terça-feira, 30 de outubro de 2007

Quando algo

duplica na nossa vida, como por exemplo, as preocupações, tudo o resto parece seguir a mesma linha. Sendo assim, a par das canseiras redobradas de uma grávida-mãe-preocupada, ainda me cai o trabalho do Planeta inteiro em cima da cabeça. Tinha aqui uma listinha de coisas que gostaria, realmente, de ver duplicadas, mas nenhum dos itens acima citados fazia parte.

O ânimo, apesar de tudo, parece estar em franca expansão positiva, por tantas razões, que incluem também as maravilhosas palavras de pais e mães que, comigo, têm partilhado as suas experiências. Não só isso. Também tenho tido algumas alegrias lá por casa, com o nosso pequenino que, brevemente, vai ser o mais velho. Palavras novas, canções que completa, evoluções ao nível da interacção (sobretudo no olá e no tchau, que já diz com intuitos de saudar e despedir-se), dos beijos que dá a quem gosta e, sobretudo, no amor que vai distribuindo a coleguinhas de escola, educadoras, auxiliares e família. É, portanto, uma fase de avanços. Por enquanto, é neles que me centrarei. Nos passos à frente e na forma de os aperfeiçoar. Terei tempo de pensar em retrocessos, se os houver.

Dia 2 de Novembro é a consulta de avaliação. Feita em modo rápido porque o meu actual estado não me permite já deslocações grandes para avaliações, por exemplo, em dias distintos. Sendo assim, tudo vai ser feito numa manhã, de uma assentada só.Não sei o que esperar. Talvez o melhor seja não esperar nada.


*Entretanto, um ponto positivo para os meninos abrangidos pelas perturbações de desenvolvimento do espectro autista do distrito de Braga: abriu, finalmente, um espaço com terapias e partilhas com outros pais. Funciona, por enquanto, sob a tutela da APPDA Norte, situada em Gaia. Ver www.autismoembraga.blogspot.com

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Sei bem

que perdi a objectividade. Já não sei o que é normal, o que é peculiar, o que é uma natural infantilidade ou uma esquisitice. Entrei num submundo mental, onde parece não ter lugar a espontaneidade. Ontem dei por mim a duvidar de uma birra que agora faz, por querer comer sozinho. Em vez de olhar o desejo normal de autonomia, pus-me a reparar na sua linguagem corporal. Na forma como se zanga, nos protestos, na força que faz. Por não ter nenhuma referência, à excepção dos milhentos de primos em segundo grau, que a distância não deixa analisar ao pormenor, não consigo discernir. Provavelmente nem vale a pena. Basta ler as centenas de blogs que por aí andam sobre crianças, nos quais cada mãe relata as birras mais atrozes dos seus filhos, capazes de verdadeiras endurances no chão, a espernear, a agredir e a morder, para ter a certeza de que é normal. É, aliás, o que menos me devia preocupar nele.

As birras do meu filho são de curta duração, são contextualizadas e não me fazem puxar os cabelos de desespero. No entanto, já as olho com desconfiança, num misto de devo-reprovar-ou-devo-fazer-de-conta? É por aí que vejo que, quando a naturalidade relacional se perde, nada jamais voltará a ser como antes. Não quero afogar-me em terra nem escavar o meu próprio buraco no mar. As contradições à minha mente pertencem. Cada coisa é uma coisa. O meu filho tem, de facto, coisinhas estranhas, como os gritinhos e os risinhos e várias coisas começadas por "inhos" e inhas". Continua a imitar os risos dos desenhos animados e a ignorar qualquer tipo de comunicação que exija pergunta- resposta ou uma qualquer troca interactiva. Responde a ordens contextualizadas, parece-me.

Queres bolacha? Estica a mão. Salto!!! E ele dá saltinhos felizes porque se diverte. Vamos pintar? Vai a correr para junto do bloco e dos marcadores. Olha sempre quando se lhe diz "toma" e "pega". Dá cá a mão, dá cá o pé, para vestir calças e camisolas. Vamos ver televisão? Pega no comando. Os exemplos são elucidativos. A comunicação propriamente dita, como troca, não a vejo. Hoje pedi-lhe para acender a luz do quarto e ele acendeu-a. Porque quis, provavelmente, não porque me estava a obedecer. Mas se lhe pedir, vai buscar isto ou aquilo, ou olha para as árvores tão bonitas, ignora-me por completo. Não posso condenar-me à cegueira nem a ilusões desnecessárias. Os poucos que sabem chamam-me "negativa". Porque não espero até ter tudo esclarecido. Mas eu prefiro assim. Mil vezes assim. Eu sei que algo está errado. Só não sei até que ponto está errado. No infantário, subo as escadas, sempre na esperança de o ver em actividades de grupo. Nunca o vejo. Está sempre a brincar sozinho. Corre para mim de braços estendidos e sorrisos, dá beijos à educadora, mas nega-se ou não vê interesse em sentar-se em roda, no meio dos outros meninos.

Gosta de música, mas não dança. Adora actividades, mas pelo entretenimento pessoal que lhe causam. Dá chutos na bola e grita "golo" mas não me parece quer encare o jogo como jogo. Gostava mesmo de acreditar que, no caso, há mesmo meninos que demoram mais a apanhar o comboio, mas não creio ser esse o caso. Vou estando mais resignada, entre ataques súbitos de pânico. Vou estando menos desesperada e mais disposta a ajudá-lo. Tenho dias. Tenho horas. Tenho, aliás, segundos. Estou numa ilha, na verdade. O facto de me isolar não ajuda. Contar também não. Muito menos contar. Desespero só de imaginar que a naturalidade de trato que vejo perdida em mim se estenda a outros. Porque eu olho-o, apesar de todos os exames involuntários a que o sujeito, com olhos de amor profundo e eterno. Os outros não.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Crueldade

Ontem, nada relacionado com o tema que actualmente ocupa a minha mente e o meu leito, contavam-me o seguinte, a propósito de um caso passado no nosso círculo de conhecimentos: Um jantar de amigos de longa data. O tema versou sobre os filhos. O pai fala do filho mais velho, louva-lhe a simplicidade, as qualidades humanas de lutador e o jeito de ser muito mais simples do que o irmão mais novo, um pouco mais complicado dos nervos e problemático. Esta semana, o filho mais velho enforcou-se. Irónico, mas revelador.

Inevitavelmente, o meu coração (nada) embrutecido compadeceu-se com uma dor assim. Do pai, da restante família, do próprio jovem. Não deixo de pensar que isto da mente humana é muito pouco linear. De uns e de outros. De pais e filhos. Quem tem, afinal, certezas de alguma coisa? A normalidade não existirá só aos nossos olhos?

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Reflexões

Não consigo evitar ter pena de mim própria. Sinto-me como se tivesse sido traçada de alto abaixo por uma faca afiada e andasse pela rua de vísceras à mostra. Pouco me importa a crueza do quadro. Se, nestas coisas, há estádios, diria que estou no primeiro, o larvar. Dentro deste casulo, não há lugar para humores e optimismos. Ainda. Tenho o coração de luto até ao pescoço. Ainda não consegui iluminar-me e rir de mim própria. Como poderia? Ando por aí vagueante, com olhar de cão abandonado e finjo... finjo muito. No trabalho, tento manter a normalidade. Fujo dos amigos para não ter de teatralizar um bem-estar inexistente. Pergunto-me: e se não tivesse sido eu dotada deste mecanismo? É assim que o meu filho terá, provavelmente, de viver a vida toda. Ele e nós, por inerência. Logo eu que, por mais uma ironia do destino, sempre me preocupei com o que os outros pensam de mim.

Um dia de cada vez, obrigo-me a pensar. Mas o cansaço que já sinto nesta fase, obriga-me a antever o que virá. A inconstância, a esperança, os olhos de gavião constantemente pousados nele, a reparar em cada pormenor, em cada suposta peculariedade. Estou como um pássaro que se debate numas mãos suadas. Ao criar este blogue, como um sítio onde despejar todas as mágoas, desta vez, curiosamente, sem qualquer preocupação com que o que pensará quem o vai ler, de certa forma estou a resignar-me a uma sorte que me parece incontornável. Talvez tenha deixado de acreditar no clique que, num repetente, virá mudar tudo.

Não consigo deixar de analisar tudo isto, como uma caricata jogada divina. Logo eu que não sei escrever sem metáforas. Logo eu que faço da comunicação a minha vida e é à custa dela que vivo. Logo eu que vejo o universo como uma gigantesca cilada de caminhos e provas. Tudo me vem à memória agora. Inclusivamente o dia em que, há meses atrás, numa exposição de quadros pintados por meninos autistas e Asperger, eu ter escolhido o meu predilecto sem notar que o menino que o assinava tinha o mesmo nome do meu filho. Achei um sinal bonito. Depois posso ter reprovado, porque o encomendei e nunca o fui buscar. Esqueci-me completamente do quadro. E se fosse mesmo assim? Uma teia intrincada, na qual somos, constantemente, postos à prova? Não interessa nada. A mente é muito traiçoeira. O que eu quero é arranjar explicações que nunca conseguirei arranjar.

Quero que alguém me diga onde e quando? Porquê? Foi um vírus, foi um cigarro mal amanhado durante a gravidez? Foi o ambiente? Foi aquela maldita febre de 40 graus que te consumiu quando tinhas 11 meses? Foram os "malditos" genes do teu padrinho, com a sua patológica timidez e fobia social? Tudo se resume a nada. A nada. Afasto a revolta, em certos momentos, mas depois ela vem em cima de mim furiosa, outra e outra vez. Durmo mal. Acordo mal. Imagino as conversas abstractas sobre o mundo que nunca terei com o meu filho, a cumplicidade das ironias, a troca de ideias. Imagino as noites mal dormidas, o seu primeiro charro, as suas tropelias de adolescente, a insubordinação natural. Banal. Vulgar. As estúpidas e corriqueiras preocupações de mãe que, agarrada à almofada ou ao avental, chora com os hematomas na cabeça e os joelhos esfolados do filho.

Não é pelo filho ideal que choro. É pelo filho vulgar. Pelo filho que, cresce, sem dezenas de olhos em cima dele a analisá-lo.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Pólos opostos

Andar aos pontapés a gritar golo e depois dar três cabeçadas incompreensíveis no sofá.

Critérios

Depois de dois meses a devorar tudo o que é literatura sobre o autismo (nas suas mais variadas formas), concluo que, nitidamente, e à semelhança do muito que já foi escrito sobre o assunto, os critérios nem sempre são a única forma de avaliação. Saber que algo está errado, também se sente com o coração. No caso do meu filho, o que me resta de sustento à negação, é mesmo o facto de ele não encaixar em quase nenhum dos seguintes critérios (escolhidos aleatoriamente da Associação dos Amigos do Autista, com sede no Brasil):

*Em Itálico segue a minha experiência com o meu filho:

1- Resiste a métodos normais de ensino (é cedo para dizer. O que noto, para já, é que se concentra normalmente em tudo o que lhe tentamos ensinar).

2-Risos e gargalhadas inadequadas (confirma-se. Por vezes fala sozinho, imita desenhos animados e fala ao telemóvel, com gestos e tudo. Também já vi este comportamento em crianças supostamente normais).

3- Ausência de medo de perigos reais (nunca notei).

4- Aparente insensibilidade à dor (reacção normal à dor).

5- Forma de brincar estranha e intermitente (não se confirma. Tem um leque muito variado de brincadeiras, desde música, pintura, encaixes, andar de triciclo, entre tantos outros).

6- Não mantém contacto visual (mantém contacto visual normalíssimo com família, amigos e no infantário. No que toca a estranhos, não posso negar um certo "desprezo" inicial) .

7- Indica as suas necessidades por gestos (confirmo. Ou isso ou usa-nos como ferramentas, o que vai dar no mesmo).

8- Age como se fosse surdo (por vezes sim, sobretudo quando está entretido).

9-Crises de choro e angústia, sem motivos discerníveis (não, nunca).

10- Gira objectos (não).

11-Dificuldade em se misturar com outras crianças (às vezes, sobretudo se da idade dele).

12-Resiste a mudanças de rotina (não).

13- Habilidades motoras desadequadas, sobretudo ao nível da motricidade fina e grossa. (não, nem uma nem outra).

14- Hiperactividade marcante ou passividade extrema (nenhuma das duas)

15- Ecolálico, repetindo o que ouve, sem contextualizar (não).16-Apego inadequado a certos objectos (não).

**Supostamente, na presença de sete destes critérios, considera-se provável o autismo ou algum grau de autismo. No caso do meu filho, há quatro critérios em que encaixa mais ou menos.

Elaboro os meus próprios sinais, contendo as características normais e as que me chamaram a atenção no meu filho, já depois de várias consultas a textos na Internet:

Os traços que considero normais:

- Não parece ter qualquer rotina ou fixação por rituais ou rotinas. Gosta de
estar em todo o lado e adapta-se muito bem.

- Não tem interesses rígidos. Gosta de encaixes, de pintar e rabiscar, de
ouvir música, de correr, ver TV, de apontar para que lhes digamos os nomes
das coisas, de andar de triciclo, aparelhos com sons, figuras e livros,
carrinhos, etc. Em suma, gosta de tudo.

- É muito desenvolvido a nível motor.

- Adora palhaçadas e rir, como qualquer outra criança.

- Mantém contacto visual normal e atende quase (sublinho o quase) sempre aos
chamamentos.

- Comunica por gestos, puxando-nos pela mão e guiando-nos até aos locais
onde estão as coisas desejadas.

- Gosta de brincar connosco.

- Interage o suficiente, sobretudo com crianças mais velhas.

- É meigo e táctil.

- Não faz muitas birras, mas sabe bem o que quer.

- Tem ciúmes normais.

- Exterioriza emoções e tem sentido de humor.

- Brinca ao esconde esconde e outros "faz-de-conta".

- Adora as actividades da escolinha.

Sinais que me preocupam:

- O olhar que se "perde" por segundos, fazendo lembrar um adulto a "olhar
para dentro", a cismar.

- Olhares "engraçados".

- Aversão a certos alimentos, sobretudo a recusa de ingerir a nossa comida,
por iniciativa própria. Tudo tem que ser disfarçado, pois faz cara de nojo a
texturas molhadas ou moles. (O insólito é que, há uns meses, agarrava
qualquer coisa do chão e metia qualquer porcaria à boca, sem aversão
nenhuma). Por outro lado, adora batatas fritas e guloseimas, embora evitemos
bastante dar-lhas. Não percebo a seleçcão...

- Além das palavrinhas que diz, nem sempre com intuitos comunicativos
(parece-me), também tem um discurso "estrangeirado", cheio de entoações. às
vezes fá-lo virado para nós, como se estivesse mesmo a conversar, esperando
ser entendido..

- No infantário, não liga por aí além aos outros meninos da idade dele, mas
tal facto
nunca foi notado pelas auxiliares e educadoras, a não ser quando lhes pedi
para estarem atentas a essa questão. Não se isola, mas é independente. Pelo
contrário, se for alguma criança mais velha, tem verdadeiro fascínio.

- Não gosta de jogar à bola e não é apreciador de jogos que envolvam
parceiros, tipo atirar a bola e voltar a recebê-la, etc (vai fazendo esta
última com as mãos, mas sem grande entusiasmo).

- Não nos chama, embora saiba dizer papá e mamã. Vai puxar-nos. Diz olá
quando calha, ao ser cumprimentado, bem como tchau com o respectivo aceno.
Sabe fazê-lo, mas raramente o faz quando "obrigado" ou "solicitado". Fá-lo
espontaneamente, de vez em quando.

- O mesmo em relação a beijos.

- Quando está compenetrado numa das suas actividades, não ouve nada do que lhe
dizemos. Por vezes nem reage.

Catarse (VIX)

Não me lembro nunca de me sentir tão triste, só e desamparada. Que vai ser de mim? Que vai ser de mim e dos meus filhos? Caio. Perco-me. Dissocio-me. Onde me agarrar? Onde?

Catarse (VIII)

me parece banal e insignificante. Com que andei a preocupar-me até hoje? Nada. Vulgaridades. Quem me dera sabê-lo antes. Não agora que o futuro se me apresenta como um enorme buraco negro. Nunca me senti tão sozinha e tão à mercê das incertezas. Sinto-me sem chão e tecto no meio de um tornado. O nascimento da minha bebé tornou-se um verdadeiro motivo de pânico. Que efeitos terá sobre o irmão? Positivos? Negativos? Como lidaria eu com isso, sendo tão fraca? Fiz tudo mal até agora. Não consigo fazer com que coma normalmente, sequer que durma sozinho ou que fale. Porque não fala o meu filhinho? Porque não tem curiosidade em provar tudo, se tal faz parte da natureza humana? Estarei a exigir demais dele, de mim? O que é que eu fui fazer? Qualquer que seja o meu destino, ao menos ajuda-me a não perder nem o leme nem a força. Queria muito ser feliz. Queria muito ter uma família feliz. Era o que eu mais queria.

Catarse (VII)

Meu filho, a mãe está a sofrer tanto por ti. A mãe dá tudo e a vida para que não lhe fujas nunca. Seria muito pedir para acordar e voltar à doce inocência? Não quero isto, não quero. Tenho momentos em que estou muito perto de aceitar, mas é sobretudo por ele que sinto medo. Saberá ele sobreviver neste mundo exigente? Será discriminado, afastado? Não suporto essa ideia sequer, não a suporto... Meu Deus, não me ajudes a mim, ajuda-o a ele. Faz com que a suspeita não se confirme. Peço-te. Imploro-te. Desde que ele era pequenino tenho pedido por ele. Ajuda-o agora. Por mim, já nem sei se alguma vez te pedi por mim. Peço-te agora. Por favor, não me deixes aqui sozinha.

Catarse (VI)

Apetece-me vir aqui escrever a cada minuto que passa. O mail do médico pôs-me a pensar. Se ele falar será uma coisa? Se não falar será outra? É que, se assim for, são critérios verdadeiramente abrangentes e absurdos, que abarcam desde o louco ao são. Fala meu filho, fala.

Catarse (V)

Mais um desabafo. Ou isso ou rebento. A cada minuto deste processo, vou pensando, reflectindo. Nada nesta vida nos garante que seremos perfeitos, integrados, cativantes e bem sucedidos. De facto, a maioria não o é. Há muita gente feia, por dentro e por fora. Talvez seja mesmo sorte se o filho que me foi oferecido, e que nunca deixei de agradecer, estiver despido de certas maldades que se escondem atrás de sorrisos brilhantes e fatos com lantejoulas. Todas, ou quase todas as almas, têm as suas dores, os segredos e os obscuros. Algumas têm verdadeiros fantasmas terríficos. Nunca saberemos o que carcome e atrofia um cérebro clinicamente perfeito. Haverá, aliás, um cérebro cuja normalidade nos dê garantes de alguma coisa? Não creio. Talvez o mundo esteja afinal pejado de autistas. Talvez o mundo esteja pejado de esquizóides, o que é ainda pior. Então porque choro eu? Porquê? Não há quem, rei da evolução linear, venha a ser o pior dos filhos? Então porque choro eu? As únicas lágrimas que devo verter são pelo medo dos retrocessos. Porque isso o meu menino não merece. Nossa Senhora de Fátima está comigo na caminhada. Connosco. Amen.

Catarse (IV)

O meu menino é uma criança muitíssimo bonita e muito meiga. Um menino verdadeiramente especial. Devia sentir-me feliz por isso. Mas a angústia e a dor não me largam, sobretudo porque não queria que ele sofresse. Dava tudo para que ele não sofresse. Meu Deus, ajuda-nos, por favor.

Catarse (III)

Continuo apavorada, com os nervos destroçados. Perguntei ao médico, através do email, o que raio era uma PEA não especificada. É algo ainda não enquadrável nem num extremo nem noutro. Mas como supor sequer que pode ser autismo clássico se o meu amor está tão próximo da normalidade? A ... vai pedir por ele, por nós, em Fátima. A ... também vai lembrar-se de nós no reiki. Quem sabe não tenho o milagre que tanto peço? A bebé continua activa. Pobre menina, não a tenho amado como merece. O medo é quase obsessivo. Não penso em mais nada. Acordo angustiada e em pânico. Quando acordarei? Ajuda-me...

Catarse (II)

Desanimei porque estive a ler uns documentos científicos que incluiam nas estereotipias o mexer no cabelo, correr em círculos e revirar os olhos. Já não consigo discernir o que é normal e o que não é. Há dias em que o noto diferente, uma pequena bombinha prestes a explodir, resmunga, levanta a mão ao pai e faz beicinho à mínima contrariedade. Na alimentação, estamos na mesma. Quase não quis comer. Comeu a fruta de boião sozinho e isso deixou-me feliz. Também acabou de dizer Noddy. Não queria viver nesta ansiedade para sempre, reparar nele, sobreprotegê-lo, ver coisas onde não existem. Hoje desanimei outra vez. Muito. Acho que não vou mesmo acordar aliviada, deste sonho mau, embora tudo em mim anseie por um milagre. Avó...

Catarse (I)

Nossa senhora de Fátima, mãe de todas as mães. Agora que falo só contigo, posso até descurar-me no rigor linguístico, na vontade de agradar. Queria só dizer-te que o nosso menino está a desabrochar como uma linda flor. Palavras também das educadoras e das auxiliares. Imita o cão, gato, vaca, abelha, cavalo, peixe, o pato e o galo, na perfeição. Diz boca, já está, peixe, olá, lindo, caiu, mamã, papá, tchau, um dois, três, quatro e cinco.

Termina as músicas que lhe cantamos, está mais arteiro, desinibido, amoroso e interactivo. Olha-nos nos olhos, ouve-nos e percebe tudo o que lhe dizemos, à excepção das vezes em que não parece estar interessado em cumprir ordens.Olha-nos nos olhos com ternura, brinca connosco, tem um imenso sentido de humor, dá saltos quando lhe pedimos e beijos muitas vezes. Minha Nossa Senhora, não me prives do meu filho. Abre-lhe a concha, deixa-o crescer. Faz com que nada tenha, alguém das peculiaridades próprias de um ser humano. Pode até ser meio excêntrico, meio original, mas não o faças sofredor e conflituoso. Não o desprovas do seu regulador social, faz com que nunca regrida nas suas evoluções. Por ti e pelo mundo, farei tudo o que estiver ao meu alcance, é a minha promessa honesta.

Às vezes

quando, por minutos, temos um pesadelo trágico, agradecemos o acordar. No quente da cama, tudo está, afinal, bem. Foi só um pesadelo, um sonho mau. O alívio é indescritível. Parte de mim, ainda anseia acordar. Já nem sei ao certo onde tudo começou. Sei que, aos poucos, de tanto pensar, de tanto reflectir, sou eu própria um caleidoscópio de dores. De nada me serve rever cada momento, porque nele pouco encontrarei de inconsistente com a evolução de uma criança. Agora que o céu se desfez em mim, com a fúria de uma tempestade, agarro cada pedaço, tentando registar inconsistências, pensamentos soltos. O meu filho faz hoje 26 meses. Dois anos e dois meses.

Quando era bebé, sorriu muito cedo. Sorria muito. Ao mínimo sinal de simpatia de estranhos e familiares... Era um bebé extremamente simpático. Sempre adorou rir. Nunca lhe notei nada de estranho ou diferente. Gatinhou no prazo aceitável, andou aos 13 meses, desenvolveu incrivelmente bem ao nível motor. Lembro-me que, ao nível da fala, achei, em determinada fase, que estava a perder terreno. Não lhe notava grandes evoluções. Foi talvez este o principal sinal. Sei agora que há teorias que referem que, se aos 12 meses, um bebé não reagir ao chamamento do seu nome, tem mais probabilidades do que os outros de vir a ter um quadro autista.

Ainda estava muito longe de o saber. Neste puzzle interminável, também aponto agora o facto de ele não chamar pelo pai ou pela mãe, resistir a aprender o olá e o tchau. Nunca pareceu dar grande importância às acrobacias sociais. Nem eu, na altura. Ironicamente, sempre disse que nunca me preocuparia muito em ensinar "gracinhas" ao meu filho. A vida é toda ela uma ironia, sem dúvida alguma. Aos poucos, e por comparação, comecei a achar estranho o facto de não estar a desenvolver a fala a um ritmo adequado. Também não demonstrava um interesse por aí além nos estranhos, com as devidas excepções. O facto de resistir ao contacto com os avós, embora longe e de visitas pouco assíduas, também me causou certa estranheza.

Não adianta muito coleccionar sinais. Havia algo de diferente, sem dúvida. Os meninos da idade dele comportavam-se de uma forma mais atenta ao mundo. De todos os lados, havia quem desdramatizasse. Os meninos falam mais tarde. Há, inclusivamente, um caso no infantário dele de um menino com mais meio ano que ainda não fala quase nada. Nada disso me sossegou, como o provei pelos passos que dei a seguir. Depois foi um relativo isolamento. Interacção diminuída. Há dois meses, levei-o a uma terapeuta da fala, sem sonhar sequer com o que me esperava. Após falar em várias hipóteses, e sem qualquer avaliação, considerou haver "sinais dúbios" da possibilidade de traços autistas. Começou o meu flashback. Desde então, a minha mente não parou por um segundo. O meu filho passou a ser um "case- study" aos meus olhos. Vivi cada dia num misto de angústia e negação. Alegria e tristeza.

Cada conquista era aplaudida. Cada sinal estranho vivido como uma desgraça. O meu filho, às vezes, parece-me só imaturo. Mas estou já preparada para o pior (?). Sinto-me no início da travessia. Aos meus pés, uma corda bamba e um poço sem fundo. Com uns exercícios mais específicos, saímos da terapeuta com a indicação de voltar dois meses depois. Já não fui lá, mas sim ao Cadin, em Cascais. Fez anteontem uma semana, que o médico considerou haver uma "forte suspeita" de uma Perturbação do Espectro Autista. Qual não sei. Espera-nos uma consulta de avaliação no dia 2 de Novembro. O dia em que um capítulo da nossa história pode ser encerrado para começar um novo. Mais tarde, publicarei excertos da minha catarse. Da minha metamorfose dolorosa. Dos meus medos e reflexões. Uns mais apatetados do que outros. Todos querendo encontrar uma tábua de salvação. Neste momento, nada mais me sinto se não uma náufraga.

O sinal

Abro esta porta a uma nova vida. Quero ajudar. Este é o início de uma jornada. O meu filho pode ter uma Perturbação do Espectro Autista, embora não tenha ainda sido feito o diagnóstico. Seja como for, este foi o sinal necessário para que a minha existência, por ora tão cheia de banalidades, tenha uma causa. Ajudar a divulgar o autismo será a minha.