terça-feira, 27 de novembro de 2007

Brincadeiras/ondas do mar

Basicamente, envolvem livros com figuras, cartões com desenhos e imitações de objectos quotidianos (alimentos, panelas, pratos, garrafas de sumo). Sobretudo, para que aprenda as palavrinhas, interacções e reacções. Reconhece os alimentos, as roupas, os animais, alguns números e algumas letras. Sinceramente, o miúdo está muito bem em várias áreas. Ao vê-lo brincar, não há nada nele de peculiar ou de excêntrico, à parte alguns saltinhos histéricos ou gargalhadas de imitação de adultos. Para ser sincera, já vi isso em muitos miúdos sem PEA, pelo que é uma análise que vale o que vale.

O meu menino é, na grande maioria das vezes, um ser humano comum, com algumas aptidões mais reforçadas (e outras menos), talvez devido ao "treino" a que o sujeitamos, em forma de brincadeiras. Nunca foi nosso objectivo que soubesse melhor ou com mais perfeição do que os outros. Mas, na verdade, há coisas que, inevitavelmente, vai aprendendo mais rápido do que aqueles meninos que vão crescendo em modo automático. Não é, seguramente, por ter qualquer tipo de sobredotação, mas somente porque é "treinado" para se desenvolver. (com a carga que este método implica). Tem os seus bonecos preferidos a quem dá beijos e abraços e a quem finge alimentar ou mudar a fralda. Continua a dar beijos a pedido, a dizer olá e tchau socialmente e a insistir no "É mê", quando alguém lhe tira algo das mãos. Mais recentemente, também já diz o "dá cá". Pede pão, a pepê (chupeta) ou água. Pergunta pela lua de dedinho virado ao céu.

Repete quase todas as palavras que lhe dizemos, incluindo nomes ou expressões do tipo "cala-te" ou "gosto de ti". Persistem muitas dúvidas quanto à compreensão/uso da totalidade das mesmas. Não é, de facto, muito conversador, e já dei por mim a tentar perceber se repete as palavras e as expressões para as aprender, se é ecolalia ou se eu já estou em completo delírio e não deixo o meu filho em paz, no seu crescimento e ritmo próprio.


Percebe várias ordens e pedidos e obedece, na grande maioria das vezes, sobretudo as simples, claro, como "apanha aquilo", "vai acender a luz", "vamos calçar os sapatos", "anda comer". Tenho-o observado com pessoas que vê poucas vezes. Sente vergonha social e aborrece-se muito quando cai em "público". É muito mais relutante a cantar, em frente a estranhos, o que eu interpreto como um sinal muito positivo. Quando me vê, corre para mim de braços abertos e diz "mamãaa". Aponta para o próprio corpo, nomeando muitas das suas partes. Quando lhe pergunto como se chama, não responde. Preocupa-me, confesso. Se for preciso, sabe o nome dos "amigos" de peluche, mas reluta em responder como se chama a mãe ou o pai. Só o diz se eu insistir no nome para que o repita.

Ao nível das emoções, há muito por perceber. De facto, não é simples estar a simular um sentimento e esperar que ele o entenda. Já o vi a chorar por ver uma discussão mais exaltada entre mim e o pai. Já o vi a chorar porque uma amiga minha me estava a fazer cócegas e ele não percebeu se me estava a fazer bem ou mal. Já o vi muito sério a olhar para outras crianças que choram. De mim e do pai, usualmente ri-se do nosso teatro. Julga (e bem) que estamos a brincar. Gosta muito de dançar e, se bem que pareça um desengonçado, tem muita piada e muito ritmo. Em certas coisas, parece-me que está a crescer de forma mais lenta. Noutras, parece-me absolutamente comum. Nestas coisas nunca se tem certezas absolutas nem dúvidas perenes, pois não? É isso que mais me irrita.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Para o eco blogosférico

- Tendo um mundo só deles, misterioso e, de vários prismas, perturbadoramente impenetrável, quem dispõe de um entendimento maior sobre a realidade? Eles, que a temem, ou nós que a enfrentamos? Eles que se escapam para dentro, sempre que se assustam, ou nós que andamos por aí, com sacos de fantasmas às costas? Há uma noção em alguns mentes quiçá mais simples e sonhadoras como a minha, de que os autistas percebem mais do que aquilo que aparentam. A prova disso, mais do que não seja, surge em certas reacções surpreendentes, em que, aos nossos olhos, quase que jurávamos ter à nossa frente um ser humano sem nenhuma incapacidade social ou comunicacional. E esses momentos existem, de facto.

- Há relatos de mães que julgaram que os filhos de dois anos eram distraídos, nada pareciam ouvir e a pouco reagiam. Anos mais tarde, já crianças de escola, recordam-se em pormenor deste e daquele episódio, provando que estavam lá e que guardaram registo disso. O grande enigma prender-se-à sempre com os porquês. Porque é que sabem falar e não falam? Porque é que sabem chorar e não choram? Porque o fazem só às vezes? Essa inconstância é que nos tira o chão da lógica. E sabe Deus como todos nos socorremos da lógica para organizar tudo nesta vida, incluindo emoções. Hoje estive no Planeta Asperger. Como sempre, e como todos nós, dá-se a voltinha da praxe pelos espaços virtuais que nos aproximam, mesmo nas diferenças. Perturbaram-me duas coisas no www.fromplanetasperger.blogspot.com

Isto:

"Continuarei a percorrer este "caminho"com todas as receitas de amor,disciplina,treino mas "pelo andar da carruagem"não vislumbro qualquer "clic"que altere o percurso das coisas.E não me interessa se ele tem 80% ou 40% nos testes porque também já percebi que os conhecimentos que adquire não lhe servem para nada.A informação fica lá no disco rígido mas o software para a processar no momento certo não funciona...", escrito por MariaMartim.

E isto:

"O meu filho na noite da morte do meu pai passou-a excitadíssimo a jogar playstation... Na altura ainda não tinha diagnóstico de SA. Acho que foi a coisa que mais me chocou até hoje. E nunca mais falou no avô... e se eram ligados...", relatado pelo Asper, autor do blog


Estes são, sem dúvida nenhuma, os dois grandes medos dos pais e familiares destes meninos. Talvez a constatação mais forte de que somos tão diferentes deles como eles são de nós. Ou não. Não sabemos. Esta aparente frieza face a algumas circunstâncias não é fácil de perceber ou explicar. Principalmente porque, em certas ocasiões, eles nos mostram outros lados. Nunca terei coragem de o tentar comprovar, propositadamente. Tenho medo. Se eu desaparecesse, o meu filho perguntaria por mim? Que sofreria pela minha ausência, não tenho a mínima dúvida. Mas choraria, ficaria marcado pela perda? Não chorar, significaria ausência de emoções? Seria mais uma defesa? Uma vez mais, a não compreensão e a não certeza é o que mais perturba e, como bem disse o Asper, que mais choca. O meu filho adora a tia, mas quando ela não está durante dois ou três dias, não pergunta por ela. Não quererá saber?


Não esperar mais nenhum "clic" é, definitivamente, o momento decisivo em que os aceitamos como são. Mas, por certo, a transição que mais pode magoar-nos. Viver com esperanças vãs é diferente de viver com optimismo quase resignado. Julgo que fere mais a primeira opção de vida. Por vezes, também me pergunto se o meu filho pediria o jantar se eu, deliberadamente, me "esquecesse" de lho dar. Petiscar sabe ele. Vai buscar o que quer aos armários e em cima da mesa. Mas almoço, jantar, banho? Notará ele se o privarmos destas coisas? Comove-me o realismo da MariaMartim, aceitando a realidade como nós, supostamente outsiders do autismo, a interpretamos. Mas, nitidamente, sem nunca baixar os braços. Aceitá-los não significa desistir deles, sei-o bem e fica provado nas palavras de pais de aspies e autistas mais velhos. Mas creio que a aceitação mais difícil de alcançar é aquela em que deixamos de tentar que eles sejam iguais ou parecidos connosco. E, sobretudo, desistir de os entender à luz dos padrões que estabelecemos para a normalidade.


*Peço desculpa por ter "usurpado" partes dos testemunhos. Espero não ter abusado da boa vontade dos autores. Queria responder no blog do Asper, mas seria demasiado extenso. Se preferirem, retiro as citações.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Fatalismos reciclados

Se ele tem défice de empatia, eu tenho excesso. Não julgo que a proporcionalidade da nossa diferença me torne potencialmente mais feliz. Muito pelo contrário. Eu posso, hipoteticamente, fazer sofrer menos pessoas, mas sofro mais.

domingo, 18 de novembro de 2007

Verdades de La Palice

Ou recaídas.

Nascer sem o dom de comunicar, não é nenhuma doença, benção ou acaso. É uma maldição. É como nascer sem pernas, sem braços, cego ou surdo. Nada tem de animador, de romântico ou de poético. Pode ser melhor do que muita coisa ou pior do que etecetera e tal, mas não me queiram fazer crer que alguém o aceita de ânimo leve, sequer que fique feliz com isso.

Se há diferenças entre uns e outros, tudo deriva da razoabilidade da adaptação a uma situação inesperada. Depois do furacão, é natural que, no meio de um cenário desolador, tenhamos a capacidade de sorrir por estarmos vivos. Faz parte da sobrevivência, depois do caos a ordem aparente. Mas até nisso somos diferentes. Há os que podem cair na tendência de se acharem moralmente superiores na forma como aprenderam a encarar a questão, há os que se acham acima dos demais por terem mais experiência e há os nada disso. Há os que, ao sabor da maré, vão estando guisados ou cozidos, frescos ou assados, esquecendo por dias ou horas, mas sem nunca perdoar.

Porque o autismo não é característica que se deseje a ninguém. Ou que se minimize ao ponto de a transformar em algo quase bom. É nascer com uma incapacidade quase vital. Independentemente de tudo quanto possamos fazer pela nossa sanidade e pela felicidade deles, por mais bonitos e meigos que sejam os nossos filhos, vê-los a sofrer será sempre o nosso triângulo das Bermudas, o nosso calcanhar frágil e desnudado, o ponto fulcral onde todo perderemos a dignidade e o ânimo acumulado nos bons momentos. Parece-me fantástica a capacidade de se ensinar o mais céptico a ver o lado menos mau da coisa. O que não se pode é pensar ou mesmo dar a entender que A, B ou C sabe encarar melhor e viver melhor com isso.

Ninguém sabe. Todos aprendem. Todos se adaptam. Todos sobrevivem. Mas não chame o optimista, trágico ao outro. Não se designem as lágrimas dos outros de dramáticas. Há tempos para tudo. Para voos e retrocessos. Para detentores da verdade, capazes de ridicularizar a dor ou a incredulidade alheia, ou para os verdadeiros cúmplices, os que encostam, ombro com ombro, numa caminhada semelhante. Sem juízos de valor ou verdades lapaliçadas.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Para a Jane

Querida Jane, em breve perceberás porque razão te envio um recado público, em vez de um email. Cada palavra nossa, pode servir de muleta para outros, tal como também nós nos vamos segurando neste ou naquele testemunho. Cada uma das pessoas que vês nas minha modesta caixa de comentários, fizeram uma pequena grande diferença na minha vida. Numa fase não muito longínqua, foram a experiência viva em que me segurei, mesmo sem os conhecer. Foram três meses intensos, semelhantes à passagem lenta de uma eternidade, em que pensei neles, imaginei-lhes as mesmas dores, reflexões e dilemas e, depois, a forma como conseguiram adaptar-se, sem dramatismos ou sem dramatismos fatalistas. Uns mais cépticos, outros mais optimistas, outros muito bem humorados, outros ainda que, como eu, vivem nos altos baixos, cada um vai lidando como pode com este inesperado mundo dos chamados problemas de desenvolvimento.

Respondo, por aqui, às tuas questões. O meu filho não faz terapia da fala. Julgo que é o equivalente no Brasil de uma fonoaudióloga (?). O neuropediatra e a psicóloga consideraram que a escola linguística dele será o infantário, amigos e família. Ainda não recebi o relatório relativo aos testes, mas, na conversa mantida após as avaliações, não lhe foi aconselhado, para já, nem consultas de pedopsiquiatria nem qualquer outra terapia compensatória. Julgo que querem ver ainda para onde evoluirão os sinais "estranhos" dele. Querem certificar-se se se vão manter, agravar ou diluir. O menino fala cada vez mais palavrinhas, mas, salvo algumas excepções, ainda não usa a linguagem como deve ser. Na sua plenitude não a usa. Na maioria das vezes, ainda tenta levar-nos pela mão, aos sítios, o que se torna difícil de contrariar, pois fica impaciente.

Só muito raramente pede, com palavras, aquilo que quer. Ou pede a chupeta ou uma batata ou pão. Mas ainda não olhou para nós, em conversa, naquela troca efectiva de comunicação. O efeito comunicativo existe essencialmente nas brincadeiras e nos carinhos, onde, nitidamente, há cumplicidade e interacção. Quando dizes no teu testemunho que a Juju já não vos usa como ferramenta, como melhoraste essa área? Podes partilhar o que vos tem sido aconselhado para reverter os parâmetros menos "normais"?

Obrigada e um beijinho

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Que vou fazer?

Se gosto destas versões cor-de-rosa de se encarar a diferença?


"Deficiente" é aquele que não consegue modificar sua vida aceitando as imposições de outras pessoas ou da sociedade em que vive, sem ter consciência de que é dono do seu destino.

"Louco" é quem não procura ser feliz com o que possui.

"Cego" é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria. E só tem olhos para seus míseros problemas e pequenas dores.

"Surdo" é aquele que não tem tempo de ouvir um desabafo de um amigo ou o apelo de um irmão, pois está sempre apressado para o trabalho e quer garantir seus tostões no fim do mês.

"Mudo" é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde atrás da máscara da hipocrisia.

"Paralítico" é quem não consegue andar na direção daqueles que precisam de ajuda.


"Diabético"é quem não consegue ser doce.

"Anão" é quem não sabe deixar o amor crescer.

E, finalmente, a pior das deficiências é ser miserável, pois "miseráveis" são todos os que não conseguem falar com Deus.


Retirado do blog do Du.

Curtas e ocas

-Dizer que o autismo é multifactorial parece-me uma multitreta. É a mesma coisa que dizer que pode ter sido um pinguinho de chuva ou um raiozinho de sol. Mais valia dizer: alguma coisa o provocou, mas não sabemos se foram coisas ou loisas.


- "O que tem, para já, não chega para o enquadrar num quadro autista. Os sinais podem diluir-se completamente. Mas não lhe posso garantir como será o seu filho dentro de cinco anos ou dez", disse-me ela. "E de si e de mim, pode??", pergunto-lhe.

- Tal como meu marido passou, de repente, a ressonar do piso dos quartos até à garagem, fazendo mais barulho do que uma caldeira em fim de tempo, também o meu filho adquiriu outras facetas, num repente. No infantário diz-se que lhe deu o "clique" do crescimento. Sobretudo nos últimos três meses. Fala cada vez mais, já não lhe conto as palavras, responde, obedece, dança, canta, beija e abraça muito. Naturalmente, o que lhes sobra de alegria a elas, sobra-me de cautela a mim. Esta porra das Perturbações do Espectro Autista têm muito que se lhes diga. Uma vez entrando neste mundo, dificilmente voltaremos a ser o que eramos. Não temos descanso mental e temos medo de acreditar. Mas o que é certo é que as minhas antenas de mãe ainda não estão satisfeitas. Não porque não me espante este desabrochar. Aprecio-o e dou-lhe imenso valor. Mas tenho para mim que, em termos comunicativos, ainda não está no ponto. Em vez de chamar mamã, manda uns gritos meios tribais. Ainda acha que devemos adivinhar que ele tem sede. Já pede pão e diz mamã quando me vê, mas está ainda aquém de usar os recursos que a comunicação lhe podem possibilitar. Veremos onde nos leva esta longa estrada.

- A televisão tem estado quase sempre desligada lá em casa. Os serões são passados em brincadeiras e actividades. Cumprimos a indicação de que devemos "estar sempre em cima". Uma vez mais, incomoda-me este cerco. Porque penso sempre que ele pode achar-nos uns grandes chatos e a coisa passar a ter o efeito contrário, acentuando dependências. Um manual, please?

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Outros olhares

Todos somos autistas, a gradação está nos rótulos



Por Fábio Adiron



-Quando me recuso a ter um autista em minha classe, em minha escola, alegando não estar preparado para isso, estou sendo resistente à mudança de rotina.


-Quando digo a meu aluno que responda a minha pergunta como quero e no tempo que determino, estou sendo agressivo.


-Quando espero que outra pessoa de minha equipe de trabalho faça uma tarefa que pode ser feita por mim, estou a usando como ferramenta.

-Quando, numa conversa, me desligo, "viajo", estou olhando em foco desviante, estou tendo audição seletiva.

-Quando preciso desenvolver qualquer atividade da qual não sei exatamente o que esperam ou como fazer, posso me mostrar inquieto, ansioso e até hiperativo.

-Quando fico sacudindo meu pé, enrolando meu cabelo com o dedo, mordendo a caneta ou coisa parecida, estou tendo movimentos estereotipados.

-Quando me recuso a participar de eventos, a dividir minhas experiências, a compartilhar conhecimentos, estou tendo atitudes isoladas e distantes.

-Quando nos momentos de raiva e frustração, soco o travesseiro, jogo objetos na parede ou quebro meus bibelôs, estou sendo agressivo e destrutivo.

-Quando atravesso a rua fora da faixa de pedestres, me excedo em comidas e bebidas, corro atrás de ladrões, estou demonstrando não ter medo de perigos reais.

-Quando evito abraçar conhecidos, apertar a mão de desconhecidos, acariciar pessoas queridas, estou tendo comportamento indiferente.


-Quando dirijo com os vidros fechados e canto alto, exibo meus tiques nervosos, rio ao ver alguém cair, estou tendo risos e movimentos não apropriados.

Somos todos autistas. Uns mais, outros menos. O que difere é que em uns (os não rotulados), sobram malícia, jogo de cintura, hipocrisias e em outros (os rotulados) sobram autenticidade, ingenuidade e vontade de permanecer assim.


http://topicosemautismoeinclusao.blogspot.com/

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Casos práticos

Não é que importe verdadeiramente a procura de genes que possam ter alguma implicação. Mas, numa primeira fase, é inevitável não o fazer.

Tem 32 anos. Mora com os pais, depois de se separar da companheira, que é, por ironias, o oposto dele. Aventureira e destemida, capaz de fazer as malas e rumar para um e outro país na busca de melhores condições de vida. Ele é quieto, calado e depende dos outros para muita coisa, incluindo ir ao médico ou tratar de papeladas. Isola-se no computador, horas a fio, não permitindo interrupções ou incómodos, mesmo não estando, actualmente, na casa dele. "Quem está mal, muda-se", parece ser o lema que lhe rege a vida. E di-lo sempre que é arreliado, sem qualquer pudor.

Ouço mais atentamente agora as histórias da sua infância. De como estava quieto, sem fazer asneiras, a brincar, sempre sossegado. De como chorava a plenos pulmões sempre que lhe pediam para ir fazer um recado. De como não tolerava que alguém mexesse nos objectos dele ou sequer que lhe movessem a disposição das coisas no quarto. Inevitavelmente, comparado a toda a hora com um irmão fura- vidas, desinquieto, falador e alegre. Onde e como se ajudaram? Ou, pelo contrário, não se terão anulado em certos momentos? Sei que os comparam. Sempre os compararam, o que pode ter acentuado a baixa auto- estima de um e enaltecido o ego do outro.

Presentemente, o que se nota mais é um claro descomprometimento face às trocas sociais. "Tu dás-me o mundo e arredas-me as pedras do caminho porque tens obrigação. Eu nada te dou. Aliás, nem me lembro de que, na vida, há que dar para receber". Tem pontos positivos. Ternura por crianças, em certos momentos. Sentido de humor, quando está disponível. Olha nos olhos e, por vezes, parece apenas um fanático da informática muito mimado. Os pais sabem que ele sofre e nunca conseguiram que ele fosse a um especialista. A vida, de alguma forma, tem-no ajudado a ser um pouco mais independente. Trabalha, mas as mudanças afligem-no. Adia e protela sine die o envio de um currículo, com medo de enfrentar a questão. Deixa avançar aquela doença ou mal estar, por falta de coragem de se mexer sozinho.

Desde miúdo tem crises inexplicáveis de dores, nas quais se contorce, perante o horror da família, sem nunca nada lhe ter sido diagnosticado. Somatiza o mal- estar, digo eu. Os pais temem agora o seu estado de agressividade latente. Responde mal, por sistema. Se está a jogar computador algo barulhento e alguém lhe pede para baixar o som, por exemplo, mostra-se perturbado e não cumpre o que lhe pedem, nem por cortesia. Sabe-se que há algo errado com ele. O quê? Porquê? Pelo que contam, veio com ele. Mas nunca se deu um passo efectivo para o ajudar, o que poderia ter-lhe evitado muitos sofrimentos. Mesmo assim, se há nele algum traço de Asperger (como acha o médico que viu o meu filho) conseguiu integrar-se relativamente bem. Tem saído com amigos, unidos por interesses da área. Sabe conversar. Sabe rir. É algo estranho, mas, de quem vê de fora, não é mais estranho do que muitos normais anormais que por aí abundam.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A consulta

A viagem foi incómoda e calada. A mente estava ocupada de reflexões. Preparada para o que viesse. Há quem não entenda muito bem esta minha tendência para ir ao fundo do poço e voltar à tona para respirar, só depois de quase afogada. Tudo o que vier depois, é mais uma braçada para a superfície. Não suporto o contrário. Fartei-me de chorar durante parte dos quilómetros percorridos. O meu marido não conseguiu desviar-se de um passarinho e matou-o. Voltei a submergir nos meus pensamentos. Penso demais. Se a imagem de queimar fusíveis a pensar tem um quê de real, eu sou um exemplo bem revelador. Pensei na aparente arbitrariedade das coisas. Aquele pássaro morreu porquê? Haverá na morte dele algum destino, alguma lição? Porque é isso que eu tento sempre encontrar nas minhas desgraças.

Na altura, ocorreu-me que fosse um mau presságio. Depois pensei em todos nós, humanos, como Jesusinhos carregando a sua causa. Abnegados por alguém, por algo, passo a blasfémia para quem assim a interpretar. Pior ainda, cheguei a um ponto em que assumi: o pássaro morreu porque sim. Estava no sítio errado. Nas circunstâncias erradas. A quem deixará saudades? Estes pensamentos deixaram-me algo inquieta. Lembro-me de uma altura em que, por causa de uma paranóia com números, nada mais do que uma obsessão qualquer, fiz uma pesquisa na net e, associado a esse número, a seguinte frase: "Aquele que caminha sozinho". Não quero caminhar sozinha. Por mais pueril que possa parecer a linha do meu pensamento, sempre tive fé. Fé no sentido lato.

Eu preciso de achar que há alguma ordem no caos. Algum sentido no absurdo. Preferi pensar que o pobre do passarinho se sacrificou por uma causa maior. No dia seguinte, chegámos ao CADIN, à hora certa. 9h30. É importanre cada passo, não quero esquecer nada. São as minhas memórias. Bebi um café de máquina e esqueci-me de pedir o açúcar. Encomendei-o a uma médica qualquer que passava, desculpando-me com os nervos miúdos. Mas não estava nervosa. Comecei a ficar quando a psicóloga se atrasou. Não suporto atrasos. Deve ser das poucas coisas em que sou mesmo intransigente. Andava lá uma menina, nitidamente com PEA. Falava, mas fazia também muitos sons, muitas vocalizações estranhas. A mãe não parecia confortável. A miúda tinha uns quatro anos, usava fralda, a julgar pelos toalhetes e fraldas que a mãe levava. Reparei por não ter mais nada para fazer. A psicóloga chegou com meia hora de atraso. Entrámos numa sala onde havia uma estagiária simpática, pronta para milhentas folhinhas com rabiscos e apontamentos. Assim foi.

Jogos de encaixes, puzzles, diferenciação de peças, texturas, cores, tudo normal.Fez tudo à primeira. Nalguns casos à segunda, que importa? Ele sabe fazê-los. Não lhe incomodaram texturas em particular, nem o atraíram coisas que giram ou fazem barulhos repetitivos. Explorou tudo, sem critério rígido. No jogo do esconde- esconde, fez cucu com a terapeuta, pôs dois peluches a interagir, fez saltar o sapo, de nenúfar em nenúfar. No faz- de conta, deu de comer a um boneco, comeu ele, deu de comer à psicóloga. Sorriu muito, queixou-se quando algo lhe era retirado com "ais" sentidos. Disse umas palavrinhas, nariz, boca, noddy, sai, entre várias outras consoante o que se ia passando.

Os sorrisos sociais e os olhares cúmplices, sobretudo connosco, mas também com a estagiária, com quem pareceu simpatizar logo, dando-lhe um beijinho sem chucha, foram interpretados como sinais muito positivos. Não havendo comprometimento congnitivo de qualquer ordem,nem problemas na motricidade fina ou grossa, foi hora dos testes de socialização propriamente ditos. A especialista considerou que, com ela, o olhar não foi suficientemente "preso" no dela. Preocupou-a o facto de ele ainda nos guiar aos sítios, apesar de nos olhar nos olhos sempre que o faz, esperando a nossa reacção. Quando lhe foi dado para a mão, um "set" de objectos quotidianos, que ele sabe perfeitamente como usar, já que anda sempre atrás de mim para me pentear ou a querer roubar-me a escova de dentes para lavar os dele, ignorou tudo o resto e pôs-se a retirá-los e a colocá-los novamente num copo, repetidamente. Comprtamento que denuncia uma exploração algo repetitiva, que não sendo anormal numa criança comum, pode sê-lo no caso concreto, tendo em conta o contexto.

Depois das perguntas exaustivas aos pais, que culminaram com o desvalorizar de alguns sinais que eu achava precupantes e se concluiu não haver estereotipias, rituais ou rotinas, a avaliação global é, nesta primeira fase, muito mais positiva do que alguma vez esperei. Não porque não saiba como é o meu filho, mas porque um contexto simulado vale o que vale e podia correr de qualquer forma. O menino tem, de facto, dois ou três parâmetros a seguir, sendo ainda muito cedo para definições. Segundo a psicóloga, "há muitas coisas boas a emergir", incluindo a fala, pelo que não pode também ser descartada a hipótese de os sinais se diluirem.

Se se verificar o contrário, a perspectiva de intervenção atempada pode significar, para ele, uma melhoria muito grande, num caso, por si só, aparentemente ligeiro. Sei bem que a concha parece estar sempre pronta engoli-los, num passo em falso. Mas não vou pensar nisso, por agora. Vou levar as dicas à educadora, para que se evite a tendência para algum isolamento e exploração repetitiva, e vou continuar a ajudá-lo em casa. Ele está muito diferente, a começar pelas vezes em que nos ignora, que são muito menos frequentes. No consultório, não olhou para a avaliadora quando esta o chamou, olhou para o pai, e, numa atitude inesperada, já no fim, concentrado nas suas pinturas, levantou o olhar para a terapeuta e sorriu-lhe, quando ouviu que o nome dele estava a ser mencionado.

Não se esperam retrocessos de qualquer ordem, nesta fase. Nem mesmo quando a irmã nascer. Ainda há um longo caminho a percorrer. Mas uma vez afogada, qualquer conquista me servirá para respirar cada vez melhor.