terça-feira, 23 de outubro de 2007

Reflexões

Não consigo evitar ter pena de mim própria. Sinto-me como se tivesse sido traçada de alto abaixo por uma faca afiada e andasse pela rua de vísceras à mostra. Pouco me importa a crueza do quadro. Se, nestas coisas, há estádios, diria que estou no primeiro, o larvar. Dentro deste casulo, não há lugar para humores e optimismos. Ainda. Tenho o coração de luto até ao pescoço. Ainda não consegui iluminar-me e rir de mim própria. Como poderia? Ando por aí vagueante, com olhar de cão abandonado e finjo... finjo muito. No trabalho, tento manter a normalidade. Fujo dos amigos para não ter de teatralizar um bem-estar inexistente. Pergunto-me: e se não tivesse sido eu dotada deste mecanismo? É assim que o meu filho terá, provavelmente, de viver a vida toda. Ele e nós, por inerência. Logo eu que, por mais uma ironia do destino, sempre me preocupei com o que os outros pensam de mim.

Um dia de cada vez, obrigo-me a pensar. Mas o cansaço que já sinto nesta fase, obriga-me a antever o que virá. A inconstância, a esperança, os olhos de gavião constantemente pousados nele, a reparar em cada pormenor, em cada suposta peculariedade. Estou como um pássaro que se debate numas mãos suadas. Ao criar este blogue, como um sítio onde despejar todas as mágoas, desta vez, curiosamente, sem qualquer preocupação com que o que pensará quem o vai ler, de certa forma estou a resignar-me a uma sorte que me parece incontornável. Talvez tenha deixado de acreditar no clique que, num repetente, virá mudar tudo.

Não consigo deixar de analisar tudo isto, como uma caricata jogada divina. Logo eu que não sei escrever sem metáforas. Logo eu que faço da comunicação a minha vida e é à custa dela que vivo. Logo eu que vejo o universo como uma gigantesca cilada de caminhos e provas. Tudo me vem à memória agora. Inclusivamente o dia em que, há meses atrás, numa exposição de quadros pintados por meninos autistas e Asperger, eu ter escolhido o meu predilecto sem notar que o menino que o assinava tinha o mesmo nome do meu filho. Achei um sinal bonito. Depois posso ter reprovado, porque o encomendei e nunca o fui buscar. Esqueci-me completamente do quadro. E se fosse mesmo assim? Uma teia intrincada, na qual somos, constantemente, postos à prova? Não interessa nada. A mente é muito traiçoeira. O que eu quero é arranjar explicações que nunca conseguirei arranjar.

Quero que alguém me diga onde e quando? Porquê? Foi um vírus, foi um cigarro mal amanhado durante a gravidez? Foi o ambiente? Foi aquela maldita febre de 40 graus que te consumiu quando tinhas 11 meses? Foram os "malditos" genes do teu padrinho, com a sua patológica timidez e fobia social? Tudo se resume a nada. A nada. Afasto a revolta, em certos momentos, mas depois ela vem em cima de mim furiosa, outra e outra vez. Durmo mal. Acordo mal. Imagino as conversas abstractas sobre o mundo que nunca terei com o meu filho, a cumplicidade das ironias, a troca de ideias. Imagino as noites mal dormidas, o seu primeiro charro, as suas tropelias de adolescente, a insubordinação natural. Banal. Vulgar. As estúpidas e corriqueiras preocupações de mãe que, agarrada à almofada ou ao avental, chora com os hematomas na cabeça e os joelhos esfolados do filho.

Não é pelo filho ideal que choro. É pelo filho vulgar. Pelo filho que, cresce, sem dezenas de olhos em cima dele a analisá-lo.

2 comentários:

Anônimo disse...

Cara amiga,
Suponho que já nos cruzámos noutro blog pois reconheço a sua aflição e venho apenas tentar apaziguar a sua dor, embora com pouca esperança de o conseguir.Concordo consigo nas suas reflexões sobre os "porquê", as "encruzilhadas da vida" ou os desígnios de Deus ou do destino...muitas vezes tenho recorrido a esse tipo de "explicação" para o inexplicável.Também eu ainda estou na fase da aceitação, apenas um muito ligeiro passo à sua frente.E esse trabalho de aceitação é muitas vezes dificultado pela esperança do tal "clique" que se mantém...Mas cada dia que passa vou melhorando.Embora pareça um cliché, não tenha dúvida que o tempo ajuda...se soubermos usá-lo pela positiva.Desabafe, duvide, chore, grite, tudo isso faz parte do processo de sofrimento humano.Mas não desespere, pois isso enfraquece-a e, por influência directa,irá enfraquecer o seu filho.Muita coragem e conte com o meu apoio.

. disse...

Mariamartim, se houver categorias nisto de encarar o autismo, então eu serei a menos realista de todas. Acredito sempre que tudo pode melhorar. Só ainda estou muito (muito, muito, muito) longe dessa fase. Muito obrigada pelo seu apoio. É, de facto, muito importante. Um beijinho