quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Sei bem

que perdi a objectividade. Já não sei o que é normal, o que é peculiar, o que é uma natural infantilidade ou uma esquisitice. Entrei num submundo mental, onde parece não ter lugar a espontaneidade. Ontem dei por mim a duvidar de uma birra que agora faz, por querer comer sozinho. Em vez de olhar o desejo normal de autonomia, pus-me a reparar na sua linguagem corporal. Na forma como se zanga, nos protestos, na força que faz. Por não ter nenhuma referência, à excepção dos milhentos de primos em segundo grau, que a distância não deixa analisar ao pormenor, não consigo discernir. Provavelmente nem vale a pena. Basta ler as centenas de blogs que por aí andam sobre crianças, nos quais cada mãe relata as birras mais atrozes dos seus filhos, capazes de verdadeiras endurances no chão, a espernear, a agredir e a morder, para ter a certeza de que é normal. É, aliás, o que menos me devia preocupar nele.

As birras do meu filho são de curta duração, são contextualizadas e não me fazem puxar os cabelos de desespero. No entanto, já as olho com desconfiança, num misto de devo-reprovar-ou-devo-fazer-de-conta? É por aí que vejo que, quando a naturalidade relacional se perde, nada jamais voltará a ser como antes. Não quero afogar-me em terra nem escavar o meu próprio buraco no mar. As contradições à minha mente pertencem. Cada coisa é uma coisa. O meu filho tem, de facto, coisinhas estranhas, como os gritinhos e os risinhos e várias coisas começadas por "inhos" e inhas". Continua a imitar os risos dos desenhos animados e a ignorar qualquer tipo de comunicação que exija pergunta- resposta ou uma qualquer troca interactiva. Responde a ordens contextualizadas, parece-me.

Queres bolacha? Estica a mão. Salto!!! E ele dá saltinhos felizes porque se diverte. Vamos pintar? Vai a correr para junto do bloco e dos marcadores. Olha sempre quando se lhe diz "toma" e "pega". Dá cá a mão, dá cá o pé, para vestir calças e camisolas. Vamos ver televisão? Pega no comando. Os exemplos são elucidativos. A comunicação propriamente dita, como troca, não a vejo. Hoje pedi-lhe para acender a luz do quarto e ele acendeu-a. Porque quis, provavelmente, não porque me estava a obedecer. Mas se lhe pedir, vai buscar isto ou aquilo, ou olha para as árvores tão bonitas, ignora-me por completo. Não posso condenar-me à cegueira nem a ilusões desnecessárias. Os poucos que sabem chamam-me "negativa". Porque não espero até ter tudo esclarecido. Mas eu prefiro assim. Mil vezes assim. Eu sei que algo está errado. Só não sei até que ponto está errado. No infantário, subo as escadas, sempre na esperança de o ver em actividades de grupo. Nunca o vejo. Está sempre a brincar sozinho. Corre para mim de braços estendidos e sorrisos, dá beijos à educadora, mas nega-se ou não vê interesse em sentar-se em roda, no meio dos outros meninos.

Gosta de música, mas não dança. Adora actividades, mas pelo entretenimento pessoal que lhe causam. Dá chutos na bola e grita "golo" mas não me parece quer encare o jogo como jogo. Gostava mesmo de acreditar que, no caso, há mesmo meninos que demoram mais a apanhar o comboio, mas não creio ser esse o caso. Vou estando mais resignada, entre ataques súbitos de pânico. Vou estando menos desesperada e mais disposta a ajudá-lo. Tenho dias. Tenho horas. Tenho, aliás, segundos. Estou numa ilha, na verdade. O facto de me isolar não ajuda. Contar também não. Muito menos contar. Desespero só de imaginar que a naturalidade de trato que vejo perdida em mim se estenda a outros. Porque eu olho-o, apesar de todos os exames involuntários a que o sujeito, com olhos de amor profundo e eterno. Os outros não.

4 comentários:

Anônimo disse...

Mãe, cheguei hoje ao seu blogue e li tudo de uma assentada. Sou mãe de um menino de 4 anos diagnosticado com PEA aos 2. Revivi tudo e identifiquei-me em tudo:os critérios para diagnostico da perturbação não preenchidos, as "esquisitices" do menino, a recusa de certos alimentos, etc.
Só lhe posso dizer que, acredite, tudo vai melhorar. Comigo já passaram 2 anos e as coisas estão muito melhores. Também quis um milagre, perguntei-me o porquê das razões, culpei-me por alguma falta de tempo para ele, enfim...Mas, após chorar e fazer o meu "luto", levantei-me e lutei, busquei ajudas para ele e hoje, este meu anjinho, dá-me tantas alegrias, é tão meigo, tão doce. Tenho outro filho mais velho, com 6 anos, e por ele, por nós, obrigamo-nos a viver na normalidade, o que só tem beneficiado o mais novo. É certo que é mais dificil lidar com este meu filho especial, mas apreendidas as regras ele cumpre com mais facilidade do que o mais velho, que não tem problemas. O maior problema dele é a linguagem verbal (fala ainda muito pouco, e tem vindo a melhorar com a terapia da fala que começou este ano), mas entende tudo. E, acima de tudo, é um menino muito feliz e bem disposto.
Não receie a consulta de 2 NOV. Vá com espirito aberto e questione tudo o que pode fazer, os apoios que pode receber , a quem se deve dirigir para pedir intervenção para o menino, no caso de se confirmar o diagnóstico e, se assim for, comece a trabalhar desde já. Vai ver que com o tempo, este período de dor, vai-se esbatendo e vamos começando a lidar com o dia-a-dia, de forma normal. Procure apoio para si também ( O cadin tem apoio às familias). Acima de tudo, mostre-lhe que o ama incondicionalmente, não lhe mostre tanta tristeza e vai ver que, com paciência e muito, muito amor, as coisas vão ficar muito melhores. Acredite! qualuer coisa que necessite estou ao seu dispor.
Um beijinho.
Maria Anjos

. disse...

Maria Anjos, já a tinha lido no blog do Asper e tinha gostado muito do seu testemunho. Nem sabe como lhe agradeço. Cada palavra, neste momento, faz toda a diferença. Hoje passei o dia muito mais leve. O meu amor pelo meu filho nunca será abalado. Continuo a achá-lo um serzinho espectacular, que não trocava por mais nenhum deste mundo. Isso é algo que se manterá para sempre, independentemente do que vier. Sei que, a cada dia, também com a vossa ajuda, me sentirei melhor e mais forte. Um grande beijinho e vamos falando e reflectindo juntos, pois, realmente, ter companhia faz toda a diferença.

Anônimo disse...

Olá Soucomotu...

Li o teu comentário no meu blog, e resolvi vir cá espreitar.

E antes de mais, quero agradecer-te teres colocado um link para o meu Sopro do Coração, aqui na tua casa.

Mas quero também dizer-te que nem tudo está perdido. Que os nossos meninos são especiais,e que por isso, nós também somos pais especiais.

O caminho que, neste momento, estás a fazer, também já eu fiz. As consultas, a angustia do diagnóstico, o pânico do futuro (e não falo só do futuro a longo prazo, falo do futuro a curto prazo, também) e um sem número de sensações que nos assolam.
Tal como diz a maria anjos, há que fazer o luto, e depois partir para a luta.
Não te vou mentir, não é uma luta fácil, as batalhas nunca estão verdadeiramente ganhas. Há sempre mais um passo a dar.
O meu menino, foi diagnosticado aos 3 anos e meio. Já lá vão 18 meses. A minha reacção inicial, foi de desespero. Confesso que por ignorância minha. A imagem que tinha do autismo era aterradora. Depois informei-me e vi que afinal as coisas podem não são assim tão negras e que cada caso é um caso. Passei dias, aqui na net, em busca de informação sobre PEA. Fez-me bem, ajudou-me muito. Ganhei forças para lutar pelo meu filho.

O meu menino, hoje, passados 18 meses do seu diagnóstico, está uma criança completamente diferente. Fez progressos fantásticos. Mas mantém todos aquelas "pequenas" coisas, aquelas "esquisitices" que quem está de fora não compreende (e quem está dentro às vezes também não).

Força, muita força! É tudo o que posso desejar!

. disse...

Cristina, obrigada por teres vindo. Tenho essa noção de que falas, que se prende com o ficar aterrada logo no início. No meu caso, não foi tanto por desconhecer o autismo. Já tinha tido contacto com pais de autistas e assisti de perto às suas dificuldades, sobretudo no que toca ao autimo mais grave. Quando nos toca a nós, é inevitável o sofrimento. Não seria normal se, desde logo, nos mantivessemos optimistas. Eu vou chorar sempre por determinadas coisas que nunca teremos, mas, tenho a certeza, nunca deixarei de sentir alegria por outras. Estou muito melhor agora do que estava no início. Ao poucos, o processo vai seguindo o seu rumo. Não podia era deixar de o registar, desde o muito mau às conquistas, pois sei que, um dia, poderá vir a ser útil para alguém. Obrigada e um beijinho