quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Um só desejo

Sonhei com um adulto a dizer-me: "Um dia saberás do que sou capaz".


Mas eu já sei, meu filho, e vou acreditar em ti sempre.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Alguém

lhes chamou Fortaleza Vazia, num clássico qualquer da área da psicologia. Vou ali ver se há fundamento e já venho.

Foi ela que me disse, a psicóloga de 50 anos que trabalha emoções. Aceitá-los sem restrições, sem contestações, sem questões ou imposições. Deixá-los ser. Na essência de tudo: mimar. Ajudá-los a libertar o caudal de emoções que, neles, se faz cercar por uma barragem. Por enquanto, vejo uma Fortaleza Cheia de muita coisa. Sobretudo de mistérios e emoções retidas.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Muito havia a dizer

e muito a actualizar, mas, por hoje, apetece-me só registar um pequeno momento passado por ocasião da segunda visita ao Centro de Desenvolvimento.

No parque de brincadeiras, aparece um menino grande, sorridente, de olhar algo vago. Não sei o que há de diferente nele. Brilham-lhe os olhos, mas ele parece mais do que um menino grande banal. Não tem aquela curiosidade profunda no olhar que vê quem olha de fora. Na altura, não o mirei demasiado. Sorri-lhe só. Mas agora, sempre que o recordo, fixo-me no sorriso de olhos verdes estranhamente nítido. Como se, naquele corpo grande de menino de 12 anos, o que sobressaísse fossem os pormenores. O ar de quem está, mas não está. Aquele olhar típico de quem vê algo que eu não estou a ver. Não sei se era autista. Se era muito ou pouco autista. Sei que havia nele qualquer coisa. Podia ser só timidez. O meu filho estende-lhe os braços. Ele pega nele ao colo. O que eu vejo, de facto, são dois meninos a sorrirem um para o outro e a olharem-se olhos nos olhos, felizes. Dois seres que comunicaram.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Pai Natal

Eu queria, por um dia, ter uma alma simplex.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Deixa-me cá aproveitar

que já não corro risco de ser avaliada nem diagnosticada, portanto posso dizer o que bem me apetece.

Chegou o relatório. Nem vale a pena mencionar o tempo que levou a ser redigido, pese embora a boa vontade, simpatia e profissionalismo do especialista que o compilou. O quadro, como seria expectável é compatível com uma PEA. Olhei para as cotações como um boi a olhar para um Centro de Desenvolvimento Infantil. Depois, passei aos factos discriminados e senti os chifrezitos a crescerem cada vez mais. Ora, ora, que mais se podia esperar de mim, que, em adolescente, já me achava capaz de contestar as filosofias de Kant e Hegel? Tenho a mania que sou fina, prontoS.


Fora os pontos fracos do meu filho, que conheço como ninguém, e que já aqui os esmiucei como um macaco à cata de piolhos, os restantes sintomas desconhecidos, explanados no relatório, deixaram-me com a carraça atrás da orelha. Subjectividade e consequente manipulação é o que se espera sempre de ciências não exactas.

Exemplifico (sendo as alíneas postas por mim):

A bold, o registo do psicólogo. A itálico, os meus comentários.

a) Quando o examinador pergunta se o catraio roda pneus de carrinhos, o pai, santo inocente, diz que às vezes. Pois claro, por segundos e quando são novos. Nunca o vimos a rodar coisas repetidamente, a bem dizer. FOI COTADO.

b) pergunta como reage a criança aos outros. Respondemos: de uns gosta, de outros não, por vezes ignora quem não lhe interessa. "Reage diferente a cada pessoa, mas, por vezes, responde desadequadamente". FOI COTADO.
Sim, senhor,como queira. Deveria ter-lhe dito que, a maioria dos filhos dos meus amigos, e até o meu afilhado, me ignoram quando não me vêem por muito tempo? É melhor não, que, às tantas, diz que estou em negação.Prosseguindo:

c) Demonstrou pouco prazer em brincadeiras com o examinador (cócegas).. FOI COTADO.
Exacto... se atirar-se para o chão às gargalhadas não contar.

d) No jogo do faz- de conta, deu papa e alimentou os bonecos e, só por uma vez, deu papa ao examinador. . FOI COTADO.
Suponho que devesse tê-lo feito repetidamente, tal era a fome de paciente e médico.

e) Por vezes pareceu devolver o sorriso ao examinador. FOI COTADO.
Pareceu??? Engraçado, não se riu para o examinador, mas fartou-se de flirtar com a estagiária...É selectivo, graças a Deus.

f) Nas brincadeiras, houve alguma dificuldade em fazer com que largasse o brinquedo da Rua Sésamo.. FOI COTADO.
Pois, já o neuropediatra tinha dito que havia ali um sinal mas, pelos motivos contrários, porque o rapaz se dispersava nas brincadeiras...Muito coerente.

g) No jogo não sei das quantas, demonstrou ter pouca espontaneidade e pouca criatividade . FOI COTADO.
Eu bem lhe disse, filho, depois de estares quatro horas fechado com um desconhecido, por favor, vê se engendras uma verdadeira novela mexicana com o cão e o gato de peluche que te vão dar para brincar.

h) Rejeita alguns sólidos, a não ser que disfarçados na comida. FOI COTADO
Também eu...bacalhau e couve de Bruxelas, por exemplo...

i) No faz- de conta, tentou meter a plasticina à boca e o bloco táctil, o que evidencia comportamentos desadequados. FOI COTADO.
Então mas aquilo não era a imitar um bolo de anos? O miúdo entusiasmou-se.

j) Por vezes corre à volta do sofá.. FOI COTADO.
Bem, há quem goste de tirar macacos do nariz...

Podia continuar e continuar, mas, por agora, não tendo os papéis à mão e tendo feito isto tudo de cabeça, prefiro tecer outras considerações gerais. Estas alíneas acima são perfeitamente ridículas e subjectivas. Muitos dos itens cotados tiveram a sua lógica e são 100% reais, que não se pense que fui acometida de cegueira materna. Não apontou, usou os pais como ferramentas e falou muitas palavras idiossincráticas, entre outras. Certíssimo. Assim era na altura, agora nem tanto, mas não vamos misturar os temas e os timings.


Aquilo que me espanta é que não tenham em conta que, num ambiente controlado, seriam, efectivamente, pouco os meninos que se sujeitariam àquele massacre com alguém que nunca viram na vida. Todos teriam sorrido e confraternizado HORAS A FIO como se ali houvesse cumplicidade e empatia naturais? Muito me espantou a forma como o miúdo colaborou, não rejeitando todas as brincadeiras propostas e a verdadeira seca que é estar a enfiar pecinhas em buraquinhos. Mas a validade dos testes não a contesto, é assim e pronto. O que me faz confusão é a interpretação dos factos/dados, sabendo que menos dois ou três pontos ali podem transformar um diagnóstico de uma PEA em coisa nenhuma. Ou em algo sem nome e sem medidas. É como condenar alguém por homicídio, com base em suspeitas. "Ninguém viu a faca usada para o assassinato, mas sabe-se que arguido, de vez em quando, pega numa". Pretende-se confirmar uma teoria, certo? Se o objectivo fosse refutá-la, os resultados objectivos poderiam ter sido outros. Não preciso de dizer mais nada.

Depois foram as conclusões. Generalizadas. Chapa quatro, o examinador discorreu sobre todas as características de uma PEA, sem atender aos blocos de dados que, no caso do meu filho, deram zero, como são as estereotipias e interesses e rotinas restritos. Não seria de esperar outra coisa. Corre-se a carneirada a um documento feito para todos, só se muda o nome. Em algumas frases, onde no documento geral se leria "deve o menino com autismo, blá blá...", nem sequer houve o trabalho de o preencher apenas com o nome da criança, aparecendo algo como isto: "O Pedro com autismo, blá blá".

Ou ainda: "O Pedro deve ser sentado num ambiente de trabalho específico, onde ela deverá ser cativada para...". Não há comentários possíveis. É como o médico que escolhe uma receita à toa e limita-se a mudar o nome do paciente. Coisa estúpida quando se trata de um espectro tão vasto.

Onde estão as intervenções personalizadas? Conclui-se que o Pedro deve ser sujeito a um rol de rotinas estabelecidas, and so on and so on... Pergunto eu: Qual é a utilidade de estar a criar rotinas rígidas para uma criança que as não tem? Será para transformar aquilo que ainda é cura em doença? Custava muito terem desenhado uma intervenção específica para as questões onde o MEU filho tem problemas? Depois não é suposto ninguém questionar-se sobre isto... eles são prós, pá, não desconfies. Pois não, devo começar já a tratar-me para o cancro, tendo eu um quistozito, né?

A lógica da pressa e do dinheiro mina tudo, pelos vistos. Sustentar uma máquina daquelas (centro de desenvolvimento) não é fácil. Tinha pedido especificamente que, numa fase inicial, o relatório enviado à educadora, devia dar as dicas, sem especificar que ali havia uma PEA. Essa "novidade" seria trabalhada por mim, se necessário fosse, devagar e respeitando o meu tempo e do meu filho. Qual quê? À cabeça de cada folha, vem em letras visíveis: "Perturbação do Espectro Autista".

Para quem não sabe, eu questiono muito, muita coisa. Graças a esse olho clínico (passo a ironia), já a minha criancinha foi diagnosticada distintamente por três médicos diferentes, em várias maleitas infantis. Quando se passa para o domínio das ciências da mente, a desconfiança duplica e o meu detector de incongruências começa a apitar. Não espero outro diagnóstico, por enquanto, o menino é ainda muito pequeno e está em franca evolução, mas pedia, pelo menos, um pouco de respeito e honestidade.

*Já agora, alguém a quem eu não tenha pago 200 euros, pode fazer-me a caridade de explicar o que raio é o TEACCH concretamente?

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Ouvi dizer

de fonte muitíssimo segura, (como dizem os outros...) que há cada vez mais meninos a sair dos centros de desenvolvimento infantil com diagnósticos de adivinhem quê? Virose!!! Que é como quem diz, segundo uma tirada brilhante da MariaMartim, Perturbações do Espectro Autista. Desta vez, é assim tipo um surto vírico que está a espantar o meio. Deixem-me aparvalhar de vez... porque o meu cérebro nojentamente normal, não pára de trabalhar desde então. Pais mais informados, menos discernimento por parte dos avaliadores, mais casos adversos, originados, sei lá, pelo lixo ambiental do mundo de hoje? Aceitam-se conjecturas absurdas, já que pouco mais nos resta senão conjecturar e inventar teorias mirabolantes. Não estarão já os neuropediatras e os psicólogos um pouco autistas? Ó pá, pergunto eu, a iluminada que já chegou a achar que tinha sido a abóbora da sopa a atrasar o desenvolvimento do meu menino. Acho que nada me dará mais gozo quando o vir a transformar-se num porsche.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Ecolalia

de ideias. É disso que eu padeço. Se reler os meus textos, dou conta do eco que deixo como rasto. Comunicação, palavras, palavras, comunicação. E a minha análise é quase sempre a mesma. Gosto de tragi-comédias. E, talvez por isso, rio-me de mim mesma.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Mais e mais dúvidas

Na preocupação de que nenhuma das pessoas que sabem perca a naturalidade, perdi-a eu. Tudo me parece mal, desadequado e maçador. Sei o que é brincar com prazer. E não me parece que o deixemos. Comecei a estabelecer para os outros ordens que, sem querer, podem afectar a personalidade do meu filho. "Não o provoques", digo à minha mãe. "Não te metas com ele agora que está de neura. Deixa- o estar. Respeita o seu tempo e o seu espaço. Não digas assim, diz antes assado, Não digas homem, diz antes senhor.". Frases que me saem inadvertidamente e que chateiam quem me ouve. É uma faca de dois gumes. Não quero que o tratem diferente, mas potencio essa diferença. Ele ouve as minhas advertências e, decerto, interpreta-as como "Eu é que sou importante. Todos estão proibidos de me chatear quando estou zangado". Como se as chatices não fizessem parte da própria condição de ser. Há dois ou três dias, a avó do meu filho, minha mãe proporcionou isto aos meus ouvidos:

- Pedro (nome fictício), onde está a maçã? A maçã? Onde está a maçã? Dá a maçã à avó. Dá a maçã à mãe. A maçã? A maçã? Maçã, maçã, maçã... Maçã e MAÇÃ, MAÇÃAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA.


Foi o que eu ouvi. Ele não sei. Deu-lhe a maçã e virou costas. Imaginei-o, um destes dias, a deitar fuminho pelas orelhas, com os fusíveis a queimar. CHATOS. NÓS SOMOS CHATOS.

Não tive mais. Nesta e noutras circunstâncias sai-me: "Mas ele é alguma cobaia??? Algum rato de laboratório???".

Sinceramente, não sei até que ponto o querer ajudar tanto lhe é benéfico, em certos aspectos. Talvez o torne ainda mais diferente, lhe acentue as imaturidades. Olho para o meu afilhado. Parece um meninão. Age como um rapaz. Pode não saber metade, não ligar a letras, a números, notas musicais ou puzzles, mas lá vai crescendo sem estímulos de maior, todo desenrascado. Imagino-nos a fazer o mesmo com ele. As solicitações, por vezes absurdas para que faça algo que não quer fazer. Não nos ligaria por mais de dois segundos, a nós e às nossas metas aborrecidas e exigentes. Se a minha mãe me tivesse criado com tantos salamaleques eu seria, certamente, diferente daquilo que sou hoje. Se a minha sogra não respeitasse tanto o filho, talvez o meu marido não fosse hoje o optimista que é, com alicerces sólidos debaixo do pensamento.

A chamada intervenção precoce pode ter, de facto, dois lados. Não o massacramos, mas, obviamente, agimos de forma diferente daquela em que eramos família antes do autismo parar na nossa casa como uma sombra desavinda. O meu filho já diz as palavras todas, repete-as, até mesmo as que parecem mais difíceis. Comunica com tudo, com o corpo, com os abraços, com os olhares e com os sorrisos, mas o meu grande desgosto continua a ser não manifestar intenção de nos dar conta dos seus sentimentos.

Dizer: Tenho frio, tenho fome, tenho medo, quero mimo, quero outra roupa. Manifesta, por exemplo, intenções com palavras soltas: pepê, água, bolacha, pão, colo ou titi, mamã, papá (quando pretende a companhia de alguém em particular). Não sei se sairá deste patamar, apesar das evoluções cadentes que vai tendo. É bem capaz de sair mais e mais, ao seu ritmo lento. Mas se calhar nunca será grande conversador. Assim como assim, aquilo que não me posso permitir é o de estar a criar um pequeno tirano, a pretexto de uma característica (perturbação?) do seu desenvolvimento.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Gostava

que fosse coincidência o facto de ele não responder a quase nada que lhe pergunto. Nota-se que percebe, mas não responde.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Brincadeiras/ondas do mar

Basicamente, envolvem livros com figuras, cartões com desenhos e imitações de objectos quotidianos (alimentos, panelas, pratos, garrafas de sumo). Sobretudo, para que aprenda as palavrinhas, interacções e reacções. Reconhece os alimentos, as roupas, os animais, alguns números e algumas letras. Sinceramente, o miúdo está muito bem em várias áreas. Ao vê-lo brincar, não há nada nele de peculiar ou de excêntrico, à parte alguns saltinhos histéricos ou gargalhadas de imitação de adultos. Para ser sincera, já vi isso em muitos miúdos sem PEA, pelo que é uma análise que vale o que vale.

O meu menino é, na grande maioria das vezes, um ser humano comum, com algumas aptidões mais reforçadas (e outras menos), talvez devido ao "treino" a que o sujeitamos, em forma de brincadeiras. Nunca foi nosso objectivo que soubesse melhor ou com mais perfeição do que os outros. Mas, na verdade, há coisas que, inevitavelmente, vai aprendendo mais rápido do que aqueles meninos que vão crescendo em modo automático. Não é, seguramente, por ter qualquer tipo de sobredotação, mas somente porque é "treinado" para se desenvolver. (com a carga que este método implica). Tem os seus bonecos preferidos a quem dá beijos e abraços e a quem finge alimentar ou mudar a fralda. Continua a dar beijos a pedido, a dizer olá e tchau socialmente e a insistir no "É mê", quando alguém lhe tira algo das mãos. Mais recentemente, também já diz o "dá cá". Pede pão, a pepê (chupeta) ou água. Pergunta pela lua de dedinho virado ao céu.

Repete quase todas as palavras que lhe dizemos, incluindo nomes ou expressões do tipo "cala-te" ou "gosto de ti". Persistem muitas dúvidas quanto à compreensão/uso da totalidade das mesmas. Não é, de facto, muito conversador, e já dei por mim a tentar perceber se repete as palavras e as expressões para as aprender, se é ecolalia ou se eu já estou em completo delírio e não deixo o meu filho em paz, no seu crescimento e ritmo próprio.


Percebe várias ordens e pedidos e obedece, na grande maioria das vezes, sobretudo as simples, claro, como "apanha aquilo", "vai acender a luz", "vamos calçar os sapatos", "anda comer". Tenho-o observado com pessoas que vê poucas vezes. Sente vergonha social e aborrece-se muito quando cai em "público". É muito mais relutante a cantar, em frente a estranhos, o que eu interpreto como um sinal muito positivo. Quando me vê, corre para mim de braços abertos e diz "mamãaa". Aponta para o próprio corpo, nomeando muitas das suas partes. Quando lhe pergunto como se chama, não responde. Preocupa-me, confesso. Se for preciso, sabe o nome dos "amigos" de peluche, mas reluta em responder como se chama a mãe ou o pai. Só o diz se eu insistir no nome para que o repita.

Ao nível das emoções, há muito por perceber. De facto, não é simples estar a simular um sentimento e esperar que ele o entenda. Já o vi a chorar por ver uma discussão mais exaltada entre mim e o pai. Já o vi a chorar porque uma amiga minha me estava a fazer cócegas e ele não percebeu se me estava a fazer bem ou mal. Já o vi muito sério a olhar para outras crianças que choram. De mim e do pai, usualmente ri-se do nosso teatro. Julga (e bem) que estamos a brincar. Gosta muito de dançar e, se bem que pareça um desengonçado, tem muita piada e muito ritmo. Em certas coisas, parece-me que está a crescer de forma mais lenta. Noutras, parece-me absolutamente comum. Nestas coisas nunca se tem certezas absolutas nem dúvidas perenes, pois não? É isso que mais me irrita.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Para o eco blogosférico

- Tendo um mundo só deles, misterioso e, de vários prismas, perturbadoramente impenetrável, quem dispõe de um entendimento maior sobre a realidade? Eles, que a temem, ou nós que a enfrentamos? Eles que se escapam para dentro, sempre que se assustam, ou nós que andamos por aí, com sacos de fantasmas às costas? Há uma noção em alguns mentes quiçá mais simples e sonhadoras como a minha, de que os autistas percebem mais do que aquilo que aparentam. A prova disso, mais do que não seja, surge em certas reacções surpreendentes, em que, aos nossos olhos, quase que jurávamos ter à nossa frente um ser humano sem nenhuma incapacidade social ou comunicacional. E esses momentos existem, de facto.

- Há relatos de mães que julgaram que os filhos de dois anos eram distraídos, nada pareciam ouvir e a pouco reagiam. Anos mais tarde, já crianças de escola, recordam-se em pormenor deste e daquele episódio, provando que estavam lá e que guardaram registo disso. O grande enigma prender-se-à sempre com os porquês. Porque é que sabem falar e não falam? Porque é que sabem chorar e não choram? Porque o fazem só às vezes? Essa inconstância é que nos tira o chão da lógica. E sabe Deus como todos nos socorremos da lógica para organizar tudo nesta vida, incluindo emoções. Hoje estive no Planeta Asperger. Como sempre, e como todos nós, dá-se a voltinha da praxe pelos espaços virtuais que nos aproximam, mesmo nas diferenças. Perturbaram-me duas coisas no www.fromplanetasperger.blogspot.com

Isto:

"Continuarei a percorrer este "caminho"com todas as receitas de amor,disciplina,treino mas "pelo andar da carruagem"não vislumbro qualquer "clic"que altere o percurso das coisas.E não me interessa se ele tem 80% ou 40% nos testes porque também já percebi que os conhecimentos que adquire não lhe servem para nada.A informação fica lá no disco rígido mas o software para a processar no momento certo não funciona...", escrito por MariaMartim.

E isto:

"O meu filho na noite da morte do meu pai passou-a excitadíssimo a jogar playstation... Na altura ainda não tinha diagnóstico de SA. Acho que foi a coisa que mais me chocou até hoje. E nunca mais falou no avô... e se eram ligados...", relatado pelo Asper, autor do blog


Estes são, sem dúvida nenhuma, os dois grandes medos dos pais e familiares destes meninos. Talvez a constatação mais forte de que somos tão diferentes deles como eles são de nós. Ou não. Não sabemos. Esta aparente frieza face a algumas circunstâncias não é fácil de perceber ou explicar. Principalmente porque, em certas ocasiões, eles nos mostram outros lados. Nunca terei coragem de o tentar comprovar, propositadamente. Tenho medo. Se eu desaparecesse, o meu filho perguntaria por mim? Que sofreria pela minha ausência, não tenho a mínima dúvida. Mas choraria, ficaria marcado pela perda? Não chorar, significaria ausência de emoções? Seria mais uma defesa? Uma vez mais, a não compreensão e a não certeza é o que mais perturba e, como bem disse o Asper, que mais choca. O meu filho adora a tia, mas quando ela não está durante dois ou três dias, não pergunta por ela. Não quererá saber?


Não esperar mais nenhum "clic" é, definitivamente, o momento decisivo em que os aceitamos como são. Mas, por certo, a transição que mais pode magoar-nos. Viver com esperanças vãs é diferente de viver com optimismo quase resignado. Julgo que fere mais a primeira opção de vida. Por vezes, também me pergunto se o meu filho pediria o jantar se eu, deliberadamente, me "esquecesse" de lho dar. Petiscar sabe ele. Vai buscar o que quer aos armários e em cima da mesa. Mas almoço, jantar, banho? Notará ele se o privarmos destas coisas? Comove-me o realismo da MariaMartim, aceitando a realidade como nós, supostamente outsiders do autismo, a interpretamos. Mas, nitidamente, sem nunca baixar os braços. Aceitá-los não significa desistir deles, sei-o bem e fica provado nas palavras de pais de aspies e autistas mais velhos. Mas creio que a aceitação mais difícil de alcançar é aquela em que deixamos de tentar que eles sejam iguais ou parecidos connosco. E, sobretudo, desistir de os entender à luz dos padrões que estabelecemos para a normalidade.


*Peço desculpa por ter "usurpado" partes dos testemunhos. Espero não ter abusado da boa vontade dos autores. Queria responder no blog do Asper, mas seria demasiado extenso. Se preferirem, retiro as citações.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Fatalismos reciclados

Se ele tem défice de empatia, eu tenho excesso. Não julgo que a proporcionalidade da nossa diferença me torne potencialmente mais feliz. Muito pelo contrário. Eu posso, hipoteticamente, fazer sofrer menos pessoas, mas sofro mais.

domingo, 18 de novembro de 2007

Verdades de La Palice

Ou recaídas.

Nascer sem o dom de comunicar, não é nenhuma doença, benção ou acaso. É uma maldição. É como nascer sem pernas, sem braços, cego ou surdo. Nada tem de animador, de romântico ou de poético. Pode ser melhor do que muita coisa ou pior do que etecetera e tal, mas não me queiram fazer crer que alguém o aceita de ânimo leve, sequer que fique feliz com isso.

Se há diferenças entre uns e outros, tudo deriva da razoabilidade da adaptação a uma situação inesperada. Depois do furacão, é natural que, no meio de um cenário desolador, tenhamos a capacidade de sorrir por estarmos vivos. Faz parte da sobrevivência, depois do caos a ordem aparente. Mas até nisso somos diferentes. Há os que podem cair na tendência de se acharem moralmente superiores na forma como aprenderam a encarar a questão, há os que se acham acima dos demais por terem mais experiência e há os nada disso. Há os que, ao sabor da maré, vão estando guisados ou cozidos, frescos ou assados, esquecendo por dias ou horas, mas sem nunca perdoar.

Porque o autismo não é característica que se deseje a ninguém. Ou que se minimize ao ponto de a transformar em algo quase bom. É nascer com uma incapacidade quase vital. Independentemente de tudo quanto possamos fazer pela nossa sanidade e pela felicidade deles, por mais bonitos e meigos que sejam os nossos filhos, vê-los a sofrer será sempre o nosso triângulo das Bermudas, o nosso calcanhar frágil e desnudado, o ponto fulcral onde todo perderemos a dignidade e o ânimo acumulado nos bons momentos. Parece-me fantástica a capacidade de se ensinar o mais céptico a ver o lado menos mau da coisa. O que não se pode é pensar ou mesmo dar a entender que A, B ou C sabe encarar melhor e viver melhor com isso.

Ninguém sabe. Todos aprendem. Todos se adaptam. Todos sobrevivem. Mas não chame o optimista, trágico ao outro. Não se designem as lágrimas dos outros de dramáticas. Há tempos para tudo. Para voos e retrocessos. Para detentores da verdade, capazes de ridicularizar a dor ou a incredulidade alheia, ou para os verdadeiros cúmplices, os que encostam, ombro com ombro, numa caminhada semelhante. Sem juízos de valor ou verdades lapaliçadas.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Para a Jane

Querida Jane, em breve perceberás porque razão te envio um recado público, em vez de um email. Cada palavra nossa, pode servir de muleta para outros, tal como também nós nos vamos segurando neste ou naquele testemunho. Cada uma das pessoas que vês nas minha modesta caixa de comentários, fizeram uma pequena grande diferença na minha vida. Numa fase não muito longínqua, foram a experiência viva em que me segurei, mesmo sem os conhecer. Foram três meses intensos, semelhantes à passagem lenta de uma eternidade, em que pensei neles, imaginei-lhes as mesmas dores, reflexões e dilemas e, depois, a forma como conseguiram adaptar-se, sem dramatismos ou sem dramatismos fatalistas. Uns mais cépticos, outros mais optimistas, outros muito bem humorados, outros ainda que, como eu, vivem nos altos baixos, cada um vai lidando como pode com este inesperado mundo dos chamados problemas de desenvolvimento.

Respondo, por aqui, às tuas questões. O meu filho não faz terapia da fala. Julgo que é o equivalente no Brasil de uma fonoaudióloga (?). O neuropediatra e a psicóloga consideraram que a escola linguística dele será o infantário, amigos e família. Ainda não recebi o relatório relativo aos testes, mas, na conversa mantida após as avaliações, não lhe foi aconselhado, para já, nem consultas de pedopsiquiatria nem qualquer outra terapia compensatória. Julgo que querem ver ainda para onde evoluirão os sinais "estranhos" dele. Querem certificar-se se se vão manter, agravar ou diluir. O menino fala cada vez mais palavrinhas, mas, salvo algumas excepções, ainda não usa a linguagem como deve ser. Na sua plenitude não a usa. Na maioria das vezes, ainda tenta levar-nos pela mão, aos sítios, o que se torna difícil de contrariar, pois fica impaciente.

Só muito raramente pede, com palavras, aquilo que quer. Ou pede a chupeta ou uma batata ou pão. Mas ainda não olhou para nós, em conversa, naquela troca efectiva de comunicação. O efeito comunicativo existe essencialmente nas brincadeiras e nos carinhos, onde, nitidamente, há cumplicidade e interacção. Quando dizes no teu testemunho que a Juju já não vos usa como ferramenta, como melhoraste essa área? Podes partilhar o que vos tem sido aconselhado para reverter os parâmetros menos "normais"?

Obrigada e um beijinho

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Que vou fazer?

Se gosto destas versões cor-de-rosa de se encarar a diferença?


"Deficiente" é aquele que não consegue modificar sua vida aceitando as imposições de outras pessoas ou da sociedade em que vive, sem ter consciência de que é dono do seu destino.

"Louco" é quem não procura ser feliz com o que possui.

"Cego" é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria. E só tem olhos para seus míseros problemas e pequenas dores.

"Surdo" é aquele que não tem tempo de ouvir um desabafo de um amigo ou o apelo de um irmão, pois está sempre apressado para o trabalho e quer garantir seus tostões no fim do mês.

"Mudo" é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde atrás da máscara da hipocrisia.

"Paralítico" é quem não consegue andar na direção daqueles que precisam de ajuda.


"Diabético"é quem não consegue ser doce.

"Anão" é quem não sabe deixar o amor crescer.

E, finalmente, a pior das deficiências é ser miserável, pois "miseráveis" são todos os que não conseguem falar com Deus.


Retirado do blog do Du.

Curtas e ocas

-Dizer que o autismo é multifactorial parece-me uma multitreta. É a mesma coisa que dizer que pode ter sido um pinguinho de chuva ou um raiozinho de sol. Mais valia dizer: alguma coisa o provocou, mas não sabemos se foram coisas ou loisas.


- "O que tem, para já, não chega para o enquadrar num quadro autista. Os sinais podem diluir-se completamente. Mas não lhe posso garantir como será o seu filho dentro de cinco anos ou dez", disse-me ela. "E de si e de mim, pode??", pergunto-lhe.

- Tal como meu marido passou, de repente, a ressonar do piso dos quartos até à garagem, fazendo mais barulho do que uma caldeira em fim de tempo, também o meu filho adquiriu outras facetas, num repente. No infantário diz-se que lhe deu o "clique" do crescimento. Sobretudo nos últimos três meses. Fala cada vez mais, já não lhe conto as palavras, responde, obedece, dança, canta, beija e abraça muito. Naturalmente, o que lhes sobra de alegria a elas, sobra-me de cautela a mim. Esta porra das Perturbações do Espectro Autista têm muito que se lhes diga. Uma vez entrando neste mundo, dificilmente voltaremos a ser o que eramos. Não temos descanso mental e temos medo de acreditar. Mas o que é certo é que as minhas antenas de mãe ainda não estão satisfeitas. Não porque não me espante este desabrochar. Aprecio-o e dou-lhe imenso valor. Mas tenho para mim que, em termos comunicativos, ainda não está no ponto. Em vez de chamar mamã, manda uns gritos meios tribais. Ainda acha que devemos adivinhar que ele tem sede. Já pede pão e diz mamã quando me vê, mas está ainda aquém de usar os recursos que a comunicação lhe podem possibilitar. Veremos onde nos leva esta longa estrada.

- A televisão tem estado quase sempre desligada lá em casa. Os serões são passados em brincadeiras e actividades. Cumprimos a indicação de que devemos "estar sempre em cima". Uma vez mais, incomoda-me este cerco. Porque penso sempre que ele pode achar-nos uns grandes chatos e a coisa passar a ter o efeito contrário, acentuando dependências. Um manual, please?

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Outros olhares

Todos somos autistas, a gradação está nos rótulos



Por Fábio Adiron



-Quando me recuso a ter um autista em minha classe, em minha escola, alegando não estar preparado para isso, estou sendo resistente à mudança de rotina.


-Quando digo a meu aluno que responda a minha pergunta como quero e no tempo que determino, estou sendo agressivo.


-Quando espero que outra pessoa de minha equipe de trabalho faça uma tarefa que pode ser feita por mim, estou a usando como ferramenta.

-Quando, numa conversa, me desligo, "viajo", estou olhando em foco desviante, estou tendo audição seletiva.

-Quando preciso desenvolver qualquer atividade da qual não sei exatamente o que esperam ou como fazer, posso me mostrar inquieto, ansioso e até hiperativo.

-Quando fico sacudindo meu pé, enrolando meu cabelo com o dedo, mordendo a caneta ou coisa parecida, estou tendo movimentos estereotipados.

-Quando me recuso a participar de eventos, a dividir minhas experiências, a compartilhar conhecimentos, estou tendo atitudes isoladas e distantes.

-Quando nos momentos de raiva e frustração, soco o travesseiro, jogo objetos na parede ou quebro meus bibelôs, estou sendo agressivo e destrutivo.

-Quando atravesso a rua fora da faixa de pedestres, me excedo em comidas e bebidas, corro atrás de ladrões, estou demonstrando não ter medo de perigos reais.

-Quando evito abraçar conhecidos, apertar a mão de desconhecidos, acariciar pessoas queridas, estou tendo comportamento indiferente.


-Quando dirijo com os vidros fechados e canto alto, exibo meus tiques nervosos, rio ao ver alguém cair, estou tendo risos e movimentos não apropriados.

Somos todos autistas. Uns mais, outros menos. O que difere é que em uns (os não rotulados), sobram malícia, jogo de cintura, hipocrisias e em outros (os rotulados) sobram autenticidade, ingenuidade e vontade de permanecer assim.


http://topicosemautismoeinclusao.blogspot.com/

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Casos práticos

Não é que importe verdadeiramente a procura de genes que possam ter alguma implicação. Mas, numa primeira fase, é inevitável não o fazer.

Tem 32 anos. Mora com os pais, depois de se separar da companheira, que é, por ironias, o oposto dele. Aventureira e destemida, capaz de fazer as malas e rumar para um e outro país na busca de melhores condições de vida. Ele é quieto, calado e depende dos outros para muita coisa, incluindo ir ao médico ou tratar de papeladas. Isola-se no computador, horas a fio, não permitindo interrupções ou incómodos, mesmo não estando, actualmente, na casa dele. "Quem está mal, muda-se", parece ser o lema que lhe rege a vida. E di-lo sempre que é arreliado, sem qualquer pudor.

Ouço mais atentamente agora as histórias da sua infância. De como estava quieto, sem fazer asneiras, a brincar, sempre sossegado. De como chorava a plenos pulmões sempre que lhe pediam para ir fazer um recado. De como não tolerava que alguém mexesse nos objectos dele ou sequer que lhe movessem a disposição das coisas no quarto. Inevitavelmente, comparado a toda a hora com um irmão fura- vidas, desinquieto, falador e alegre. Onde e como se ajudaram? Ou, pelo contrário, não se terão anulado em certos momentos? Sei que os comparam. Sempre os compararam, o que pode ter acentuado a baixa auto- estima de um e enaltecido o ego do outro.

Presentemente, o que se nota mais é um claro descomprometimento face às trocas sociais. "Tu dás-me o mundo e arredas-me as pedras do caminho porque tens obrigação. Eu nada te dou. Aliás, nem me lembro de que, na vida, há que dar para receber". Tem pontos positivos. Ternura por crianças, em certos momentos. Sentido de humor, quando está disponível. Olha nos olhos e, por vezes, parece apenas um fanático da informática muito mimado. Os pais sabem que ele sofre e nunca conseguiram que ele fosse a um especialista. A vida, de alguma forma, tem-no ajudado a ser um pouco mais independente. Trabalha, mas as mudanças afligem-no. Adia e protela sine die o envio de um currículo, com medo de enfrentar a questão. Deixa avançar aquela doença ou mal estar, por falta de coragem de se mexer sozinho.

Desde miúdo tem crises inexplicáveis de dores, nas quais se contorce, perante o horror da família, sem nunca nada lhe ter sido diagnosticado. Somatiza o mal- estar, digo eu. Os pais temem agora o seu estado de agressividade latente. Responde mal, por sistema. Se está a jogar computador algo barulhento e alguém lhe pede para baixar o som, por exemplo, mostra-se perturbado e não cumpre o que lhe pedem, nem por cortesia. Sabe-se que há algo errado com ele. O quê? Porquê? Pelo que contam, veio com ele. Mas nunca se deu um passo efectivo para o ajudar, o que poderia ter-lhe evitado muitos sofrimentos. Mesmo assim, se há nele algum traço de Asperger (como acha o médico que viu o meu filho) conseguiu integrar-se relativamente bem. Tem saído com amigos, unidos por interesses da área. Sabe conversar. Sabe rir. É algo estranho, mas, de quem vê de fora, não é mais estranho do que muitos normais anormais que por aí abundam.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A consulta

A viagem foi incómoda e calada. A mente estava ocupada de reflexões. Preparada para o que viesse. Há quem não entenda muito bem esta minha tendência para ir ao fundo do poço e voltar à tona para respirar, só depois de quase afogada. Tudo o que vier depois, é mais uma braçada para a superfície. Não suporto o contrário. Fartei-me de chorar durante parte dos quilómetros percorridos. O meu marido não conseguiu desviar-se de um passarinho e matou-o. Voltei a submergir nos meus pensamentos. Penso demais. Se a imagem de queimar fusíveis a pensar tem um quê de real, eu sou um exemplo bem revelador. Pensei na aparente arbitrariedade das coisas. Aquele pássaro morreu porquê? Haverá na morte dele algum destino, alguma lição? Porque é isso que eu tento sempre encontrar nas minhas desgraças.

Na altura, ocorreu-me que fosse um mau presságio. Depois pensei em todos nós, humanos, como Jesusinhos carregando a sua causa. Abnegados por alguém, por algo, passo a blasfémia para quem assim a interpretar. Pior ainda, cheguei a um ponto em que assumi: o pássaro morreu porque sim. Estava no sítio errado. Nas circunstâncias erradas. A quem deixará saudades? Estes pensamentos deixaram-me algo inquieta. Lembro-me de uma altura em que, por causa de uma paranóia com números, nada mais do que uma obsessão qualquer, fiz uma pesquisa na net e, associado a esse número, a seguinte frase: "Aquele que caminha sozinho". Não quero caminhar sozinha. Por mais pueril que possa parecer a linha do meu pensamento, sempre tive fé. Fé no sentido lato.

Eu preciso de achar que há alguma ordem no caos. Algum sentido no absurdo. Preferi pensar que o pobre do passarinho se sacrificou por uma causa maior. No dia seguinte, chegámos ao CADIN, à hora certa. 9h30. É importanre cada passo, não quero esquecer nada. São as minhas memórias. Bebi um café de máquina e esqueci-me de pedir o açúcar. Encomendei-o a uma médica qualquer que passava, desculpando-me com os nervos miúdos. Mas não estava nervosa. Comecei a ficar quando a psicóloga se atrasou. Não suporto atrasos. Deve ser das poucas coisas em que sou mesmo intransigente. Andava lá uma menina, nitidamente com PEA. Falava, mas fazia também muitos sons, muitas vocalizações estranhas. A mãe não parecia confortável. A miúda tinha uns quatro anos, usava fralda, a julgar pelos toalhetes e fraldas que a mãe levava. Reparei por não ter mais nada para fazer. A psicóloga chegou com meia hora de atraso. Entrámos numa sala onde havia uma estagiária simpática, pronta para milhentas folhinhas com rabiscos e apontamentos. Assim foi.

Jogos de encaixes, puzzles, diferenciação de peças, texturas, cores, tudo normal.Fez tudo à primeira. Nalguns casos à segunda, que importa? Ele sabe fazê-los. Não lhe incomodaram texturas em particular, nem o atraíram coisas que giram ou fazem barulhos repetitivos. Explorou tudo, sem critério rígido. No jogo do esconde- esconde, fez cucu com a terapeuta, pôs dois peluches a interagir, fez saltar o sapo, de nenúfar em nenúfar. No faz- de conta, deu de comer a um boneco, comeu ele, deu de comer à psicóloga. Sorriu muito, queixou-se quando algo lhe era retirado com "ais" sentidos. Disse umas palavrinhas, nariz, boca, noddy, sai, entre várias outras consoante o que se ia passando.

Os sorrisos sociais e os olhares cúmplices, sobretudo connosco, mas também com a estagiária, com quem pareceu simpatizar logo, dando-lhe um beijinho sem chucha, foram interpretados como sinais muito positivos. Não havendo comprometimento congnitivo de qualquer ordem,nem problemas na motricidade fina ou grossa, foi hora dos testes de socialização propriamente ditos. A especialista considerou que, com ela, o olhar não foi suficientemente "preso" no dela. Preocupou-a o facto de ele ainda nos guiar aos sítios, apesar de nos olhar nos olhos sempre que o faz, esperando a nossa reacção. Quando lhe foi dado para a mão, um "set" de objectos quotidianos, que ele sabe perfeitamente como usar, já que anda sempre atrás de mim para me pentear ou a querer roubar-me a escova de dentes para lavar os dele, ignorou tudo o resto e pôs-se a retirá-los e a colocá-los novamente num copo, repetidamente. Comprtamento que denuncia uma exploração algo repetitiva, que não sendo anormal numa criança comum, pode sê-lo no caso concreto, tendo em conta o contexto.

Depois das perguntas exaustivas aos pais, que culminaram com o desvalorizar de alguns sinais que eu achava precupantes e se concluiu não haver estereotipias, rituais ou rotinas, a avaliação global é, nesta primeira fase, muito mais positiva do que alguma vez esperei. Não porque não saiba como é o meu filho, mas porque um contexto simulado vale o que vale e podia correr de qualquer forma. O menino tem, de facto, dois ou três parâmetros a seguir, sendo ainda muito cedo para definições. Segundo a psicóloga, "há muitas coisas boas a emergir", incluindo a fala, pelo que não pode também ser descartada a hipótese de os sinais se diluirem.

Se se verificar o contrário, a perspectiva de intervenção atempada pode significar, para ele, uma melhoria muito grande, num caso, por si só, aparentemente ligeiro. Sei bem que a concha parece estar sempre pronta engoli-los, num passo em falso. Mas não vou pensar nisso, por agora. Vou levar as dicas à educadora, para que se evite a tendência para algum isolamento e exploração repetitiva, e vou continuar a ajudá-lo em casa. Ele está muito diferente, a começar pelas vezes em que nos ignora, que são muito menos frequentes. No consultório, não olhou para a avaliadora quando esta o chamou, olhou para o pai, e, numa atitude inesperada, já no fim, concentrado nas suas pinturas, levantou o olhar para a terapeuta e sorriu-lhe, quando ouviu que o nome dele estava a ser mencionado.

Não se esperam retrocessos de qualquer ordem, nesta fase. Nem mesmo quando a irmã nascer. Ainda há um longo caminho a percorrer. Mas uma vez afogada, qualquer conquista me servirá para respirar cada vez melhor.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Quando algo

duplica na nossa vida, como por exemplo, as preocupações, tudo o resto parece seguir a mesma linha. Sendo assim, a par das canseiras redobradas de uma grávida-mãe-preocupada, ainda me cai o trabalho do Planeta inteiro em cima da cabeça. Tinha aqui uma listinha de coisas que gostaria, realmente, de ver duplicadas, mas nenhum dos itens acima citados fazia parte.

O ânimo, apesar de tudo, parece estar em franca expansão positiva, por tantas razões, que incluem também as maravilhosas palavras de pais e mães que, comigo, têm partilhado as suas experiências. Não só isso. Também tenho tido algumas alegrias lá por casa, com o nosso pequenino que, brevemente, vai ser o mais velho. Palavras novas, canções que completa, evoluções ao nível da interacção (sobretudo no olá e no tchau, que já diz com intuitos de saudar e despedir-se), dos beijos que dá a quem gosta e, sobretudo, no amor que vai distribuindo a coleguinhas de escola, educadoras, auxiliares e família. É, portanto, uma fase de avanços. Por enquanto, é neles que me centrarei. Nos passos à frente e na forma de os aperfeiçoar. Terei tempo de pensar em retrocessos, se os houver.

Dia 2 de Novembro é a consulta de avaliação. Feita em modo rápido porque o meu actual estado não me permite já deslocações grandes para avaliações, por exemplo, em dias distintos. Sendo assim, tudo vai ser feito numa manhã, de uma assentada só.Não sei o que esperar. Talvez o melhor seja não esperar nada.


*Entretanto, um ponto positivo para os meninos abrangidos pelas perturbações de desenvolvimento do espectro autista do distrito de Braga: abriu, finalmente, um espaço com terapias e partilhas com outros pais. Funciona, por enquanto, sob a tutela da APPDA Norte, situada em Gaia. Ver www.autismoembraga.blogspot.com

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Sei bem

que perdi a objectividade. Já não sei o que é normal, o que é peculiar, o que é uma natural infantilidade ou uma esquisitice. Entrei num submundo mental, onde parece não ter lugar a espontaneidade. Ontem dei por mim a duvidar de uma birra que agora faz, por querer comer sozinho. Em vez de olhar o desejo normal de autonomia, pus-me a reparar na sua linguagem corporal. Na forma como se zanga, nos protestos, na força que faz. Por não ter nenhuma referência, à excepção dos milhentos de primos em segundo grau, que a distância não deixa analisar ao pormenor, não consigo discernir. Provavelmente nem vale a pena. Basta ler as centenas de blogs que por aí andam sobre crianças, nos quais cada mãe relata as birras mais atrozes dos seus filhos, capazes de verdadeiras endurances no chão, a espernear, a agredir e a morder, para ter a certeza de que é normal. É, aliás, o que menos me devia preocupar nele.

As birras do meu filho são de curta duração, são contextualizadas e não me fazem puxar os cabelos de desespero. No entanto, já as olho com desconfiança, num misto de devo-reprovar-ou-devo-fazer-de-conta? É por aí que vejo que, quando a naturalidade relacional se perde, nada jamais voltará a ser como antes. Não quero afogar-me em terra nem escavar o meu próprio buraco no mar. As contradições à minha mente pertencem. Cada coisa é uma coisa. O meu filho tem, de facto, coisinhas estranhas, como os gritinhos e os risinhos e várias coisas começadas por "inhos" e inhas". Continua a imitar os risos dos desenhos animados e a ignorar qualquer tipo de comunicação que exija pergunta- resposta ou uma qualquer troca interactiva. Responde a ordens contextualizadas, parece-me.

Queres bolacha? Estica a mão. Salto!!! E ele dá saltinhos felizes porque se diverte. Vamos pintar? Vai a correr para junto do bloco e dos marcadores. Olha sempre quando se lhe diz "toma" e "pega". Dá cá a mão, dá cá o pé, para vestir calças e camisolas. Vamos ver televisão? Pega no comando. Os exemplos são elucidativos. A comunicação propriamente dita, como troca, não a vejo. Hoje pedi-lhe para acender a luz do quarto e ele acendeu-a. Porque quis, provavelmente, não porque me estava a obedecer. Mas se lhe pedir, vai buscar isto ou aquilo, ou olha para as árvores tão bonitas, ignora-me por completo. Não posso condenar-me à cegueira nem a ilusões desnecessárias. Os poucos que sabem chamam-me "negativa". Porque não espero até ter tudo esclarecido. Mas eu prefiro assim. Mil vezes assim. Eu sei que algo está errado. Só não sei até que ponto está errado. No infantário, subo as escadas, sempre na esperança de o ver em actividades de grupo. Nunca o vejo. Está sempre a brincar sozinho. Corre para mim de braços estendidos e sorrisos, dá beijos à educadora, mas nega-se ou não vê interesse em sentar-se em roda, no meio dos outros meninos.

Gosta de música, mas não dança. Adora actividades, mas pelo entretenimento pessoal que lhe causam. Dá chutos na bola e grita "golo" mas não me parece quer encare o jogo como jogo. Gostava mesmo de acreditar que, no caso, há mesmo meninos que demoram mais a apanhar o comboio, mas não creio ser esse o caso. Vou estando mais resignada, entre ataques súbitos de pânico. Vou estando menos desesperada e mais disposta a ajudá-lo. Tenho dias. Tenho horas. Tenho, aliás, segundos. Estou numa ilha, na verdade. O facto de me isolar não ajuda. Contar também não. Muito menos contar. Desespero só de imaginar que a naturalidade de trato que vejo perdida em mim se estenda a outros. Porque eu olho-o, apesar de todos os exames involuntários a que o sujeito, com olhos de amor profundo e eterno. Os outros não.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Crueldade

Ontem, nada relacionado com o tema que actualmente ocupa a minha mente e o meu leito, contavam-me o seguinte, a propósito de um caso passado no nosso círculo de conhecimentos: Um jantar de amigos de longa data. O tema versou sobre os filhos. O pai fala do filho mais velho, louva-lhe a simplicidade, as qualidades humanas de lutador e o jeito de ser muito mais simples do que o irmão mais novo, um pouco mais complicado dos nervos e problemático. Esta semana, o filho mais velho enforcou-se. Irónico, mas revelador.

Inevitavelmente, o meu coração (nada) embrutecido compadeceu-se com uma dor assim. Do pai, da restante família, do próprio jovem. Não deixo de pensar que isto da mente humana é muito pouco linear. De uns e de outros. De pais e filhos. Quem tem, afinal, certezas de alguma coisa? A normalidade não existirá só aos nossos olhos?

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Reflexões

Não consigo evitar ter pena de mim própria. Sinto-me como se tivesse sido traçada de alto abaixo por uma faca afiada e andasse pela rua de vísceras à mostra. Pouco me importa a crueza do quadro. Se, nestas coisas, há estádios, diria que estou no primeiro, o larvar. Dentro deste casulo, não há lugar para humores e optimismos. Ainda. Tenho o coração de luto até ao pescoço. Ainda não consegui iluminar-me e rir de mim própria. Como poderia? Ando por aí vagueante, com olhar de cão abandonado e finjo... finjo muito. No trabalho, tento manter a normalidade. Fujo dos amigos para não ter de teatralizar um bem-estar inexistente. Pergunto-me: e se não tivesse sido eu dotada deste mecanismo? É assim que o meu filho terá, provavelmente, de viver a vida toda. Ele e nós, por inerência. Logo eu que, por mais uma ironia do destino, sempre me preocupei com o que os outros pensam de mim.

Um dia de cada vez, obrigo-me a pensar. Mas o cansaço que já sinto nesta fase, obriga-me a antever o que virá. A inconstância, a esperança, os olhos de gavião constantemente pousados nele, a reparar em cada pormenor, em cada suposta peculariedade. Estou como um pássaro que se debate numas mãos suadas. Ao criar este blogue, como um sítio onde despejar todas as mágoas, desta vez, curiosamente, sem qualquer preocupação com que o que pensará quem o vai ler, de certa forma estou a resignar-me a uma sorte que me parece incontornável. Talvez tenha deixado de acreditar no clique que, num repetente, virá mudar tudo.

Não consigo deixar de analisar tudo isto, como uma caricata jogada divina. Logo eu que não sei escrever sem metáforas. Logo eu que faço da comunicação a minha vida e é à custa dela que vivo. Logo eu que vejo o universo como uma gigantesca cilada de caminhos e provas. Tudo me vem à memória agora. Inclusivamente o dia em que, há meses atrás, numa exposição de quadros pintados por meninos autistas e Asperger, eu ter escolhido o meu predilecto sem notar que o menino que o assinava tinha o mesmo nome do meu filho. Achei um sinal bonito. Depois posso ter reprovado, porque o encomendei e nunca o fui buscar. Esqueci-me completamente do quadro. E se fosse mesmo assim? Uma teia intrincada, na qual somos, constantemente, postos à prova? Não interessa nada. A mente é muito traiçoeira. O que eu quero é arranjar explicações que nunca conseguirei arranjar.

Quero que alguém me diga onde e quando? Porquê? Foi um vírus, foi um cigarro mal amanhado durante a gravidez? Foi o ambiente? Foi aquela maldita febre de 40 graus que te consumiu quando tinhas 11 meses? Foram os "malditos" genes do teu padrinho, com a sua patológica timidez e fobia social? Tudo se resume a nada. A nada. Afasto a revolta, em certos momentos, mas depois ela vem em cima de mim furiosa, outra e outra vez. Durmo mal. Acordo mal. Imagino as conversas abstractas sobre o mundo que nunca terei com o meu filho, a cumplicidade das ironias, a troca de ideias. Imagino as noites mal dormidas, o seu primeiro charro, as suas tropelias de adolescente, a insubordinação natural. Banal. Vulgar. As estúpidas e corriqueiras preocupações de mãe que, agarrada à almofada ou ao avental, chora com os hematomas na cabeça e os joelhos esfolados do filho.

Não é pelo filho ideal que choro. É pelo filho vulgar. Pelo filho que, cresce, sem dezenas de olhos em cima dele a analisá-lo.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Pólos opostos

Andar aos pontapés a gritar golo e depois dar três cabeçadas incompreensíveis no sofá.

Critérios

Depois de dois meses a devorar tudo o que é literatura sobre o autismo (nas suas mais variadas formas), concluo que, nitidamente, e à semelhança do muito que já foi escrito sobre o assunto, os critérios nem sempre são a única forma de avaliação. Saber que algo está errado, também se sente com o coração. No caso do meu filho, o que me resta de sustento à negação, é mesmo o facto de ele não encaixar em quase nenhum dos seguintes critérios (escolhidos aleatoriamente da Associação dos Amigos do Autista, com sede no Brasil):

*Em Itálico segue a minha experiência com o meu filho:

1- Resiste a métodos normais de ensino (é cedo para dizer. O que noto, para já, é que se concentra normalmente em tudo o que lhe tentamos ensinar).

2-Risos e gargalhadas inadequadas (confirma-se. Por vezes fala sozinho, imita desenhos animados e fala ao telemóvel, com gestos e tudo. Também já vi este comportamento em crianças supostamente normais).

3- Ausência de medo de perigos reais (nunca notei).

4- Aparente insensibilidade à dor (reacção normal à dor).

5- Forma de brincar estranha e intermitente (não se confirma. Tem um leque muito variado de brincadeiras, desde música, pintura, encaixes, andar de triciclo, entre tantos outros).

6- Não mantém contacto visual (mantém contacto visual normalíssimo com família, amigos e no infantário. No que toca a estranhos, não posso negar um certo "desprezo" inicial) .

7- Indica as suas necessidades por gestos (confirmo. Ou isso ou usa-nos como ferramentas, o que vai dar no mesmo).

8- Age como se fosse surdo (por vezes sim, sobretudo quando está entretido).

9-Crises de choro e angústia, sem motivos discerníveis (não, nunca).

10- Gira objectos (não).

11-Dificuldade em se misturar com outras crianças (às vezes, sobretudo se da idade dele).

12-Resiste a mudanças de rotina (não).

13- Habilidades motoras desadequadas, sobretudo ao nível da motricidade fina e grossa. (não, nem uma nem outra).

14- Hiperactividade marcante ou passividade extrema (nenhuma das duas)

15- Ecolálico, repetindo o que ouve, sem contextualizar (não).16-Apego inadequado a certos objectos (não).

**Supostamente, na presença de sete destes critérios, considera-se provável o autismo ou algum grau de autismo. No caso do meu filho, há quatro critérios em que encaixa mais ou menos.

Elaboro os meus próprios sinais, contendo as características normais e as que me chamaram a atenção no meu filho, já depois de várias consultas a textos na Internet:

Os traços que considero normais:

- Não parece ter qualquer rotina ou fixação por rituais ou rotinas. Gosta de
estar em todo o lado e adapta-se muito bem.

- Não tem interesses rígidos. Gosta de encaixes, de pintar e rabiscar, de
ouvir música, de correr, ver TV, de apontar para que lhes digamos os nomes
das coisas, de andar de triciclo, aparelhos com sons, figuras e livros,
carrinhos, etc. Em suma, gosta de tudo.

- É muito desenvolvido a nível motor.

- Adora palhaçadas e rir, como qualquer outra criança.

- Mantém contacto visual normal e atende quase (sublinho o quase) sempre aos
chamamentos.

- Comunica por gestos, puxando-nos pela mão e guiando-nos até aos locais
onde estão as coisas desejadas.

- Gosta de brincar connosco.

- Interage o suficiente, sobretudo com crianças mais velhas.

- É meigo e táctil.

- Não faz muitas birras, mas sabe bem o que quer.

- Tem ciúmes normais.

- Exterioriza emoções e tem sentido de humor.

- Brinca ao esconde esconde e outros "faz-de-conta".

- Adora as actividades da escolinha.

Sinais que me preocupam:

- O olhar que se "perde" por segundos, fazendo lembrar um adulto a "olhar
para dentro", a cismar.

- Olhares "engraçados".

- Aversão a certos alimentos, sobretudo a recusa de ingerir a nossa comida,
por iniciativa própria. Tudo tem que ser disfarçado, pois faz cara de nojo a
texturas molhadas ou moles. (O insólito é que, há uns meses, agarrava
qualquer coisa do chão e metia qualquer porcaria à boca, sem aversão
nenhuma). Por outro lado, adora batatas fritas e guloseimas, embora evitemos
bastante dar-lhas. Não percebo a seleçcão...

- Além das palavrinhas que diz, nem sempre com intuitos comunicativos
(parece-me), também tem um discurso "estrangeirado", cheio de entoações. às
vezes fá-lo virado para nós, como se estivesse mesmo a conversar, esperando
ser entendido..

- No infantário, não liga por aí além aos outros meninos da idade dele, mas
tal facto
nunca foi notado pelas auxiliares e educadoras, a não ser quando lhes pedi
para estarem atentas a essa questão. Não se isola, mas é independente. Pelo
contrário, se for alguma criança mais velha, tem verdadeiro fascínio.

- Não gosta de jogar à bola e não é apreciador de jogos que envolvam
parceiros, tipo atirar a bola e voltar a recebê-la, etc (vai fazendo esta
última com as mãos, mas sem grande entusiasmo).

- Não nos chama, embora saiba dizer papá e mamã. Vai puxar-nos. Diz olá
quando calha, ao ser cumprimentado, bem como tchau com o respectivo aceno.
Sabe fazê-lo, mas raramente o faz quando "obrigado" ou "solicitado". Fá-lo
espontaneamente, de vez em quando.

- O mesmo em relação a beijos.

- Quando está compenetrado numa das suas actividades, não ouve nada do que lhe
dizemos. Por vezes nem reage.

Catarse (VIX)

Não me lembro nunca de me sentir tão triste, só e desamparada. Que vai ser de mim? Que vai ser de mim e dos meus filhos? Caio. Perco-me. Dissocio-me. Onde me agarrar? Onde?

Catarse (VIII)

me parece banal e insignificante. Com que andei a preocupar-me até hoje? Nada. Vulgaridades. Quem me dera sabê-lo antes. Não agora que o futuro se me apresenta como um enorme buraco negro. Nunca me senti tão sozinha e tão à mercê das incertezas. Sinto-me sem chão e tecto no meio de um tornado. O nascimento da minha bebé tornou-se um verdadeiro motivo de pânico. Que efeitos terá sobre o irmão? Positivos? Negativos? Como lidaria eu com isso, sendo tão fraca? Fiz tudo mal até agora. Não consigo fazer com que coma normalmente, sequer que durma sozinho ou que fale. Porque não fala o meu filhinho? Porque não tem curiosidade em provar tudo, se tal faz parte da natureza humana? Estarei a exigir demais dele, de mim? O que é que eu fui fazer? Qualquer que seja o meu destino, ao menos ajuda-me a não perder nem o leme nem a força. Queria muito ser feliz. Queria muito ter uma família feliz. Era o que eu mais queria.

Catarse (VII)

Meu filho, a mãe está a sofrer tanto por ti. A mãe dá tudo e a vida para que não lhe fujas nunca. Seria muito pedir para acordar e voltar à doce inocência? Não quero isto, não quero. Tenho momentos em que estou muito perto de aceitar, mas é sobretudo por ele que sinto medo. Saberá ele sobreviver neste mundo exigente? Será discriminado, afastado? Não suporto essa ideia sequer, não a suporto... Meu Deus, não me ajudes a mim, ajuda-o a ele. Faz com que a suspeita não se confirme. Peço-te. Imploro-te. Desde que ele era pequenino tenho pedido por ele. Ajuda-o agora. Por mim, já nem sei se alguma vez te pedi por mim. Peço-te agora. Por favor, não me deixes aqui sozinha.

Catarse (VI)

Apetece-me vir aqui escrever a cada minuto que passa. O mail do médico pôs-me a pensar. Se ele falar será uma coisa? Se não falar será outra? É que, se assim for, são critérios verdadeiramente abrangentes e absurdos, que abarcam desde o louco ao são. Fala meu filho, fala.

Catarse (V)

Mais um desabafo. Ou isso ou rebento. A cada minuto deste processo, vou pensando, reflectindo. Nada nesta vida nos garante que seremos perfeitos, integrados, cativantes e bem sucedidos. De facto, a maioria não o é. Há muita gente feia, por dentro e por fora. Talvez seja mesmo sorte se o filho que me foi oferecido, e que nunca deixei de agradecer, estiver despido de certas maldades que se escondem atrás de sorrisos brilhantes e fatos com lantejoulas. Todas, ou quase todas as almas, têm as suas dores, os segredos e os obscuros. Algumas têm verdadeiros fantasmas terríficos. Nunca saberemos o que carcome e atrofia um cérebro clinicamente perfeito. Haverá, aliás, um cérebro cuja normalidade nos dê garantes de alguma coisa? Não creio. Talvez o mundo esteja afinal pejado de autistas. Talvez o mundo esteja pejado de esquizóides, o que é ainda pior. Então porque choro eu? Porquê? Não há quem, rei da evolução linear, venha a ser o pior dos filhos? Então porque choro eu? As únicas lágrimas que devo verter são pelo medo dos retrocessos. Porque isso o meu menino não merece. Nossa Senhora de Fátima está comigo na caminhada. Connosco. Amen.

Catarse (IV)

O meu menino é uma criança muitíssimo bonita e muito meiga. Um menino verdadeiramente especial. Devia sentir-me feliz por isso. Mas a angústia e a dor não me largam, sobretudo porque não queria que ele sofresse. Dava tudo para que ele não sofresse. Meu Deus, ajuda-nos, por favor.

Catarse (III)

Continuo apavorada, com os nervos destroçados. Perguntei ao médico, através do email, o que raio era uma PEA não especificada. É algo ainda não enquadrável nem num extremo nem noutro. Mas como supor sequer que pode ser autismo clássico se o meu amor está tão próximo da normalidade? A ... vai pedir por ele, por nós, em Fátima. A ... também vai lembrar-se de nós no reiki. Quem sabe não tenho o milagre que tanto peço? A bebé continua activa. Pobre menina, não a tenho amado como merece. O medo é quase obsessivo. Não penso em mais nada. Acordo angustiada e em pânico. Quando acordarei? Ajuda-me...

Catarse (II)

Desanimei porque estive a ler uns documentos científicos que incluiam nas estereotipias o mexer no cabelo, correr em círculos e revirar os olhos. Já não consigo discernir o que é normal e o que não é. Há dias em que o noto diferente, uma pequena bombinha prestes a explodir, resmunga, levanta a mão ao pai e faz beicinho à mínima contrariedade. Na alimentação, estamos na mesma. Quase não quis comer. Comeu a fruta de boião sozinho e isso deixou-me feliz. Também acabou de dizer Noddy. Não queria viver nesta ansiedade para sempre, reparar nele, sobreprotegê-lo, ver coisas onde não existem. Hoje desanimei outra vez. Muito. Acho que não vou mesmo acordar aliviada, deste sonho mau, embora tudo em mim anseie por um milagre. Avó...

Catarse (I)

Nossa senhora de Fátima, mãe de todas as mães. Agora que falo só contigo, posso até descurar-me no rigor linguístico, na vontade de agradar. Queria só dizer-te que o nosso menino está a desabrochar como uma linda flor. Palavras também das educadoras e das auxiliares. Imita o cão, gato, vaca, abelha, cavalo, peixe, o pato e o galo, na perfeição. Diz boca, já está, peixe, olá, lindo, caiu, mamã, papá, tchau, um dois, três, quatro e cinco.

Termina as músicas que lhe cantamos, está mais arteiro, desinibido, amoroso e interactivo. Olha-nos nos olhos, ouve-nos e percebe tudo o que lhe dizemos, à excepção das vezes em que não parece estar interessado em cumprir ordens.Olha-nos nos olhos com ternura, brinca connosco, tem um imenso sentido de humor, dá saltos quando lhe pedimos e beijos muitas vezes. Minha Nossa Senhora, não me prives do meu filho. Abre-lhe a concha, deixa-o crescer. Faz com que nada tenha, alguém das peculiaridades próprias de um ser humano. Pode até ser meio excêntrico, meio original, mas não o faças sofredor e conflituoso. Não o desprovas do seu regulador social, faz com que nunca regrida nas suas evoluções. Por ti e pelo mundo, farei tudo o que estiver ao meu alcance, é a minha promessa honesta.

Às vezes

quando, por minutos, temos um pesadelo trágico, agradecemos o acordar. No quente da cama, tudo está, afinal, bem. Foi só um pesadelo, um sonho mau. O alívio é indescritível. Parte de mim, ainda anseia acordar. Já nem sei ao certo onde tudo começou. Sei que, aos poucos, de tanto pensar, de tanto reflectir, sou eu própria um caleidoscópio de dores. De nada me serve rever cada momento, porque nele pouco encontrarei de inconsistente com a evolução de uma criança. Agora que o céu se desfez em mim, com a fúria de uma tempestade, agarro cada pedaço, tentando registar inconsistências, pensamentos soltos. O meu filho faz hoje 26 meses. Dois anos e dois meses.

Quando era bebé, sorriu muito cedo. Sorria muito. Ao mínimo sinal de simpatia de estranhos e familiares... Era um bebé extremamente simpático. Sempre adorou rir. Nunca lhe notei nada de estranho ou diferente. Gatinhou no prazo aceitável, andou aos 13 meses, desenvolveu incrivelmente bem ao nível motor. Lembro-me que, ao nível da fala, achei, em determinada fase, que estava a perder terreno. Não lhe notava grandes evoluções. Foi talvez este o principal sinal. Sei agora que há teorias que referem que, se aos 12 meses, um bebé não reagir ao chamamento do seu nome, tem mais probabilidades do que os outros de vir a ter um quadro autista.

Ainda estava muito longe de o saber. Neste puzzle interminável, também aponto agora o facto de ele não chamar pelo pai ou pela mãe, resistir a aprender o olá e o tchau. Nunca pareceu dar grande importância às acrobacias sociais. Nem eu, na altura. Ironicamente, sempre disse que nunca me preocuparia muito em ensinar "gracinhas" ao meu filho. A vida é toda ela uma ironia, sem dúvida alguma. Aos poucos, e por comparação, comecei a achar estranho o facto de não estar a desenvolver a fala a um ritmo adequado. Também não demonstrava um interesse por aí além nos estranhos, com as devidas excepções. O facto de resistir ao contacto com os avós, embora longe e de visitas pouco assíduas, também me causou certa estranheza.

Não adianta muito coleccionar sinais. Havia algo de diferente, sem dúvida. Os meninos da idade dele comportavam-se de uma forma mais atenta ao mundo. De todos os lados, havia quem desdramatizasse. Os meninos falam mais tarde. Há, inclusivamente, um caso no infantário dele de um menino com mais meio ano que ainda não fala quase nada. Nada disso me sossegou, como o provei pelos passos que dei a seguir. Depois foi um relativo isolamento. Interacção diminuída. Há dois meses, levei-o a uma terapeuta da fala, sem sonhar sequer com o que me esperava. Após falar em várias hipóteses, e sem qualquer avaliação, considerou haver "sinais dúbios" da possibilidade de traços autistas. Começou o meu flashback. Desde então, a minha mente não parou por um segundo. O meu filho passou a ser um "case- study" aos meus olhos. Vivi cada dia num misto de angústia e negação. Alegria e tristeza.

Cada conquista era aplaudida. Cada sinal estranho vivido como uma desgraça. O meu filho, às vezes, parece-me só imaturo. Mas estou já preparada para o pior (?). Sinto-me no início da travessia. Aos meus pés, uma corda bamba e um poço sem fundo. Com uns exercícios mais específicos, saímos da terapeuta com a indicação de voltar dois meses depois. Já não fui lá, mas sim ao Cadin, em Cascais. Fez anteontem uma semana, que o médico considerou haver uma "forte suspeita" de uma Perturbação do Espectro Autista. Qual não sei. Espera-nos uma consulta de avaliação no dia 2 de Novembro. O dia em que um capítulo da nossa história pode ser encerrado para começar um novo. Mais tarde, publicarei excertos da minha catarse. Da minha metamorfose dolorosa. Dos meus medos e reflexões. Uns mais apatetados do que outros. Todos querendo encontrar uma tábua de salvação. Neste momento, nada mais me sinto se não uma náufraga.

O sinal

Abro esta porta a uma nova vida. Quero ajudar. Este é o início de uma jornada. O meu filho pode ter uma Perturbação do Espectro Autista, embora não tenha ainda sido feito o diagnóstico. Seja como for, este foi o sinal necessário para que a minha existência, por ora tão cheia de banalidades, tenha uma causa. Ajudar a divulgar o autismo será a minha.