segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A consulta

A viagem foi incómoda e calada. A mente estava ocupada de reflexões. Preparada para o que viesse. Há quem não entenda muito bem esta minha tendência para ir ao fundo do poço e voltar à tona para respirar, só depois de quase afogada. Tudo o que vier depois, é mais uma braçada para a superfície. Não suporto o contrário. Fartei-me de chorar durante parte dos quilómetros percorridos. O meu marido não conseguiu desviar-se de um passarinho e matou-o. Voltei a submergir nos meus pensamentos. Penso demais. Se a imagem de queimar fusíveis a pensar tem um quê de real, eu sou um exemplo bem revelador. Pensei na aparente arbitrariedade das coisas. Aquele pássaro morreu porquê? Haverá na morte dele algum destino, alguma lição? Porque é isso que eu tento sempre encontrar nas minhas desgraças.

Na altura, ocorreu-me que fosse um mau presságio. Depois pensei em todos nós, humanos, como Jesusinhos carregando a sua causa. Abnegados por alguém, por algo, passo a blasfémia para quem assim a interpretar. Pior ainda, cheguei a um ponto em que assumi: o pássaro morreu porque sim. Estava no sítio errado. Nas circunstâncias erradas. A quem deixará saudades? Estes pensamentos deixaram-me algo inquieta. Lembro-me de uma altura em que, por causa de uma paranóia com números, nada mais do que uma obsessão qualquer, fiz uma pesquisa na net e, associado a esse número, a seguinte frase: "Aquele que caminha sozinho". Não quero caminhar sozinha. Por mais pueril que possa parecer a linha do meu pensamento, sempre tive fé. Fé no sentido lato.

Eu preciso de achar que há alguma ordem no caos. Algum sentido no absurdo. Preferi pensar que o pobre do passarinho se sacrificou por uma causa maior. No dia seguinte, chegámos ao CADIN, à hora certa. 9h30. É importanre cada passo, não quero esquecer nada. São as minhas memórias. Bebi um café de máquina e esqueci-me de pedir o açúcar. Encomendei-o a uma médica qualquer que passava, desculpando-me com os nervos miúdos. Mas não estava nervosa. Comecei a ficar quando a psicóloga se atrasou. Não suporto atrasos. Deve ser das poucas coisas em que sou mesmo intransigente. Andava lá uma menina, nitidamente com PEA. Falava, mas fazia também muitos sons, muitas vocalizações estranhas. A mãe não parecia confortável. A miúda tinha uns quatro anos, usava fralda, a julgar pelos toalhetes e fraldas que a mãe levava. Reparei por não ter mais nada para fazer. A psicóloga chegou com meia hora de atraso. Entrámos numa sala onde havia uma estagiária simpática, pronta para milhentas folhinhas com rabiscos e apontamentos. Assim foi.

Jogos de encaixes, puzzles, diferenciação de peças, texturas, cores, tudo normal.Fez tudo à primeira. Nalguns casos à segunda, que importa? Ele sabe fazê-los. Não lhe incomodaram texturas em particular, nem o atraíram coisas que giram ou fazem barulhos repetitivos. Explorou tudo, sem critério rígido. No jogo do esconde- esconde, fez cucu com a terapeuta, pôs dois peluches a interagir, fez saltar o sapo, de nenúfar em nenúfar. No faz- de conta, deu de comer a um boneco, comeu ele, deu de comer à psicóloga. Sorriu muito, queixou-se quando algo lhe era retirado com "ais" sentidos. Disse umas palavrinhas, nariz, boca, noddy, sai, entre várias outras consoante o que se ia passando.

Os sorrisos sociais e os olhares cúmplices, sobretudo connosco, mas também com a estagiária, com quem pareceu simpatizar logo, dando-lhe um beijinho sem chucha, foram interpretados como sinais muito positivos. Não havendo comprometimento congnitivo de qualquer ordem,nem problemas na motricidade fina ou grossa, foi hora dos testes de socialização propriamente ditos. A especialista considerou que, com ela, o olhar não foi suficientemente "preso" no dela. Preocupou-a o facto de ele ainda nos guiar aos sítios, apesar de nos olhar nos olhos sempre que o faz, esperando a nossa reacção. Quando lhe foi dado para a mão, um "set" de objectos quotidianos, que ele sabe perfeitamente como usar, já que anda sempre atrás de mim para me pentear ou a querer roubar-me a escova de dentes para lavar os dele, ignorou tudo o resto e pôs-se a retirá-los e a colocá-los novamente num copo, repetidamente. Comprtamento que denuncia uma exploração algo repetitiva, que não sendo anormal numa criança comum, pode sê-lo no caso concreto, tendo em conta o contexto.

Depois das perguntas exaustivas aos pais, que culminaram com o desvalorizar de alguns sinais que eu achava precupantes e se concluiu não haver estereotipias, rituais ou rotinas, a avaliação global é, nesta primeira fase, muito mais positiva do que alguma vez esperei. Não porque não saiba como é o meu filho, mas porque um contexto simulado vale o que vale e podia correr de qualquer forma. O menino tem, de facto, dois ou três parâmetros a seguir, sendo ainda muito cedo para definições. Segundo a psicóloga, "há muitas coisas boas a emergir", incluindo a fala, pelo que não pode também ser descartada a hipótese de os sinais se diluirem.

Se se verificar o contrário, a perspectiva de intervenção atempada pode significar, para ele, uma melhoria muito grande, num caso, por si só, aparentemente ligeiro. Sei bem que a concha parece estar sempre pronta engoli-los, num passo em falso. Mas não vou pensar nisso, por agora. Vou levar as dicas à educadora, para que se evite a tendência para algum isolamento e exploração repetitiva, e vou continuar a ajudá-lo em casa. Ele está muito diferente, a começar pelas vezes em que nos ignora, que são muito menos frequentes. No consultório, não olhou para a avaliadora quando esta o chamou, olhou para o pai, e, numa atitude inesperada, já no fim, concentrado nas suas pinturas, levantou o olhar para a terapeuta e sorriu-lhe, quando ouviu que o nome dele estava a ser mencionado.

Não se esperam retrocessos de qualquer ordem, nesta fase. Nem mesmo quando a irmã nascer. Ainda há um longo caminho a percorrer. Mas uma vez afogada, qualquer conquista me servirá para respirar cada vez melhor.

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá!
Está a ver como as coisas não são tão más como de inicio parecem! Vai ser sempre assim, acredite: vai haver alturas em que parece que eles dão 2 passos atrás, mas depois dão passos enormes para a frente. Sabe, o pedopsiquiatra do meu filho costuma dizer que, nestes filhos, assim como com os ditos normais, se nós colocar-mos a fasquia cá em baixo, eles fazem-nos a vontade e ficam por ali, mas se a colocar-mos lá em cima, com passos atrás e à frente, eles irão acabar por lá chegar. Não lhe vou esconder que vão surgir outra vez momentos de desânimo, porque os há, até porque é um processo absorvente, de muito trabalho e nós somos só humanos e também nos desgastamos e ficamos cansados, mas são momentos. Há periodos em que os progressos são tão notórios que nos deixam cheios de esperança no futuro, e é assim que tem de ser: ter esperança, lutar pelos nossos meninos e, acima de tudo, ama-los muito e acreditar nas suas capacidades.
Agora que tudo parece mais calmo e sereno para os seus lados ( de facto as perspectivas são optimas), pense mais em si e na sua bébé e aproveite o momento mágico que é estar grávida. vai ver que daqui a algum tempo vai ler estes posts, com lágrimas mas de alegria, por já ter conquistado tanto!
Boa sorte para todos e um grande beijinho.
Maria Anjos

. disse...

Maria Anjos, agora estou a conseguir serenar bastante, por vários motivos. Talvez as hormonas tb estejam, agora, a ajudar :D. E isso faz toda a diferença. Sei bem que desanimada nem a mim me conseguiria ajudar. Gosto muito de a ler, sinceramente. Obrigada por me vir sempre deixar umas palavrinhas. São tão importantes.